quinta-feira, abril 30

Relação/relacionamento: para além da etimologia

                                                                                 Foto: site leiaja.com

Quando pesquisamos as palavras relação e relacionamento os dicionários são unânimes em afirmar que são sinônimos, ambas pertencem à classe gramatical de substantivos, com a diferença que relação é uma palavra feminina e relacionamento é masculina, ponto.
Porém, como em sociedade nem tudo, ou quase nada, é tão relativo assim e parte da construção linguística, da significação dos símbolos são dadas não só pela práxis, mas também pelo retorno emocional (feeling) desses símbolos, pode-se, e deve-se, debater conceitos metalinguísticos sobre essas, e quaisquer outras, palavras que, notadamente, embora sinônimos, temos preferência em empregá-las em determinadas circunstâncias às outras.
Para além do léxico, relação e relacionamento, portanto, teriam uma diferença de grau de proximidade, de envolvimento, de troca. Outra diferença, relacionada ao grau de proximidade, que poderia ser marcada é a questão do livre arbítrio, ou seja, quem está em uma relação pode estar por livre e espontânea vontade ou não, pode ter, simplesmente, ido parar dentro, junto…por mero acaso. Já quem está em um relacionamento está por escolha própria, está dentro, junto…porque assim o quis, mesmo que, amiúde, não tenha total consciência dessa escolha (mas isso fica para Freud explicar).
Que as duas palavras estão intrinsecamente ligadas, isso não se pode negar. Tanto, que uma pode se transformar, transmutar na outra. Podem estar, desafiando leis básicas da física, ocupando o mesmo lugar ao mesmo tempo, ou seja, as pessoas podem estar em uma relação e um relacionamento ao mesmo tempo, sabendo disso ou não. Outra possibilidade um pouco mais polêmica é que entre duas pessoas, uma pode jurar de pés juntos estar em um relacionamento enquanto o outro pode pensar estar apenas em uma relação. Isso mesmo, você leu a palavras “apenas” precedendo a palavra “relação”, pois como já foi dito antes, existe uma diferença, uma sútil (às vezes nem tanto) diferença entre relação e relacionamento quando referimo-nos à proximidade, digamos, de almas, não necessariamente de corpos. E nessa hierarquização linguística relação é inferior a relacionamento, ainda que preferível e até necessária em muitas ocasiões.
Como exemplo, podemos falar sobre a condição humana em local de trabalho. Pessoas, circunstancialmente, acabam virando colegas de trabalho por determinado período de tempo. Se tivéssemos, e pudéssemos, que escolher uma das duas palavras para designar essa convivência em trabalho, a maioria escolheria a palavra “relação”, talvez pela capacidade que ela tem de marcar um grau de envolvimento (de almas) mínimo, básico, requerido, pré-estabelecido, um distanciamento do emocional. Já quando o assunto é uma convivência amorosa, conjugal é quase que unânime a preferência pela palavra “relacionamento”. Parece até que por si só já tem o peso da intimidade. Na etimologia, “relacionamento” vem da raiz em latim relatus, forma do verbo refero, que quer dizer trazer de volta. Em livre associação, dar e receber, troca.
Em uma relação, digamos fordiana, essa troca é limitada, quase nula quando o que se exige é apenas “sua parte bem feita”. Em um relacionamento, só fazer sua parte quase sempre é insuficiente, enquanto o contrário, sim, é um pré-requisito sine qua non para seu sucesso. Relacionamento requer que cada um faça sua parte e a parte do outro um pouquinho, pense em si e no outro, queira por si e pelo outro, aprenda e ensine…é troca constante. E, claro, o relacionamento deixa de funcionar quando um vive uma relação e o outro está atolado até o pescoço em um relacionamento, a balança da responsabilidade pende mais para um dos lados, desequilíbrio insustentável. Uma relação pode se transmutar em relacionamento quando esta extrapola os muros por ela mesma construída, seja por pactuação, moralidade ou necessidade corporativa. Um relacionamento (amoroso) pode voltar a ser uma relação (de amizade, de trabalho), desde que na reconstrução dos muros não se tenha perdido a confiança e principalmente o respeito mútuo.

Por Cristian Menezes – Abril/2020

quinta-feira, abril 9

Ensaio: sobre erros e acertos (ou EU errante)



Erro, erro muito. Errei a vida inteira e continuo errando. Erros grandes, erros médios, pequenos errinhos. Mas erro. E assumo meus erros, não me envergonho de errar. Ainda não estou pronto, não nasci pronto, e talvez nunca fique totalmente pronto para não errar mais. Aliás, a simples presunção de que se pode não errar mais já é, em si, um erro.
Erro e assumo as consequências dos meus erros. Não vou me esconder na carapaça dos fracos, dos covardes, que se defendem com a célebre frase: “erro, mas quem não erra?!?”. Os erros dos outros não anulam os meus erros, e vice-versa. Cabe aqui uma frase maravilhosa de Sartre: “Não importa o que fazem conosco. O que importa é o que fazemos com o que fazem conosco”.
Sei, até, que boa parte dos meus erros são provocados por erros alheios, mas aprendi também que sempre há o livre arbítrio, a escolha, e posso, mesmo que exija um esforço mental descomunal, interromper a lei de causa e efeito, “erraram comigo, vou errar com outro”. O pensamento é abstrato, não é regido por leis físicas, mas por leis de convívio, de caráter, de pensar o outro constantemente. Um dia consigo fazer isso em todas as situações.
Mas uma coisa importante pude observar nessa minha vida de ser errante. Erro tanto mais quanto maior é o meu amor, o meu desejo, o meu apego. Quanto mais amo alguém, mais erro com esse alguém, porque tenho pressa de acertar de vez. Quanto mais desejo alguém ou algo, mais erro tentando satisfazer-me, tenho pressa em receber e dar prazer. Quanto mais quero alguma coisa, mais erro tentando obtê-la, tenho pressa em escondê-la, para que ninguém mais a possua.
Já amei pouco, ou não cheguei a amar, e errei pouco, e de tão pouco amor e poucos erros essa pessoa saiu do meu coração sem sequer deixar vestígio, como se nem ali tivesse estado. Já desejei pouco, e errei pouco na sua busca, e sequer cheguei a sentir o dissabor de um desejo não realizado. Já quis pouco alguma coisa, errei pouco, e nem cheguei obter o objeto do meu apego.
A partir disso, desse entendimento sobre o erro e suas razões, me vi num dilema: o ideal de amar, desejar e querer é o equilíbrio entre o amar muito e amar pouco, desejar muito e desejar pouco, querer muito e querer pouco. Mas, contudo, pensar esse equilíbrio, buscar esse equilíbrio constantemente não é, em si, também um erro? Como posso amar alguém comedidamente para não errar, se amar é o próprio transbordamento das emoções, o auge, o ápice, o desespero de sentir? Como posso desejar algo ou alguém que também é objeto de desejo de outros medindo o meu desejo para não desejar demais ou de menos, se o desejo é a desmedida do querer, é querer intensamente, libidinosamente? Como saciar o apego a algo, pensando o querer muito e o querer pouco, se apego é justamente o exagero do querer ter, o egoísmo do possuir?
Diante disso, pelo menos para mim, só resta uma opção: vou amar uma pessoa com toda a minha alma, com toda a intensidade que puder amar, mas ciente que vou errar com essa pessoa de vez em quando, e vou torcer para que o meu amor seja correspondido em igual intensidade a ponto de nossos erros não serem vistos como erros, e assim, ignorando-os, enfraquecê-los até que desapareçam de nossas vidas. Vou desejar com ardor, com veemência, com todo afã que puder, mas sabedor de que vou errar muito e por vezes não realizar meus desejos, trancá-los-ei no armário de desejos irrealizados, irrealizáveis. Vou querer coisas com avidez, com perseverança, sem qualquer altruísmo, mas com a certeza de que vou errar muito e por vezes não vou chegar a conquistar meus objetivos, ou, se conquistados, perdê-los-ei por causa dos meus erros.
Mais vale lutar e perder do que nunca ter lutado, disse um sábio, provavelmente tão errante quanto eu. Lutei muitas lutas, perdi muitas delas, ganhei algumas, mas não vou mudar minha essência de lutador aprendiz, sempre em constante aprendizagem/erro/aprendizagem. Posso me reciclar a qualquer momento, me transformar, me reinventar desde que haja razão pra isso, desde que valha a pena. Porém, o motor dessa mudança, a fonte de onde tiro forças para transformar-me é a intensidade com que vivo minha vida, meu amor, meu desejo, meu querer.

Por Cristian Menezes - 2016?

Ensaio: Sobre homens e máquinas

Cenas reais postado na internet, à época, de mulher linchada no Guarujá

“Mulher é morta a pauladas em praça pública pela população acusada de bruxaria e rapto de crianças para rituais de magia negra”. Não, não é um trecho de nenhuma Acta Diurnália do século II a.C. narrando, em tabuas afixadas nos muros de Roma, os principais acontecimentos do Império Romano. Não. Essa triste notícia é de agora, pleno século XXI, numa das maiores cidades do mundo moderno, São Paulo/Brasil. E ao invés de apenas fazer parte de um rol de parágrafos em escritas cuneiformes em um pedaço de madeira, foi causada, partiu do que se tem de mais moderno em termos de tecnologia e comunicação: o computador e as famigeradas, e totalmente livres, redes sociais.
Pensei em iniciar este artigo com metáforas que lembrassem a passagem dos irmãos Caim e Abel, “o primeiro homicídio” de que se tem notícia na história escrita da humanidade. Mas depois de refletir um pouco percebi que não caberia, visto que o ato motor do assassinato bíblico teria sido a cólera causada pela inveja. Argumento frágil para se tirar a vida de uma pessoa, ainda mais quando a pessoa em questão é o próprio irmão. Torpe e fútil teriam sido as motivações para o linchamento da mãe de duas filhas no litoral paulista, deveras mais frágil que a motivação de Caim.
“Só mais um”, diriam alguns desavisados. Ledo engano. Primeiro que o que muitos chamam de linchamento, na verdade, não passa de tentativa. O linchamento deve, invariavelmente, culminar com a morte da vítima. Tentativas até houve, mas linchamento mesmo é o primeiro, pelo menos aqui, pelo menos tão cruelmente e cruamente documentado em vídeo.
E não. Não é um crime como qualquer outro. Não é um incêndio de ônibus praticado por vândalos de plantão, não é troca de tiros entre bandidos e a polícia numa favela. O linchamento parte da população. É o vizinho, a dona de casa, o estudante...que sob o véu da impunidade, do anonimato e da revolta ignorante cometem absurdos. Não, não é “só mais um crime”.
Questões semânticas à parte e longe de querer amenizar a barbárie que é um punhado de “cidadãos” sair de suas casas, suas rotinas, suas vidas para “lavar a honra” da sociedade com as próprias mãos – quem eles pensam que são? - o preocupante aqui, e aí, e só aí, cabe uma pequena comparação com o primus hominis excidium, do Gênesis, é a profunda e atordoante indiferença pela vida, é a temerosa proximidade com o que há de mais incognoscível e lascivo na condição humana que envolve os dois atos. Com um agravante, Caim estava no início do que hoje chamamos de sociedade. Já o que vivemos é o futuro de todos os tempos passados, é o amanhã tão sonhado por Asimov (o Isaac - IA Inteligência Artificial) e perturbadoramente vislumbrado em pesadelos psicodélicos por Huxley (o Aldous – Admirável Mundo Novo) e por Burgess (o Anthony – Laranja Mecânica).
O futuro chegou e todas as máquinas, todo o colorido das LEDs, a inteligência dos nerds, a presteza dos softwares a rapidez das nets só tem servido, ou pacificamente assistido, via webcam, à desumanização do homem. De que adianta tanta tecnologia, ciência, saberes se o mais importante e mais simples e objetivo de tudo isso, que é o convívio pacifico do homem com os seus em sociedade, não está sendo alcançado, aliás, está se perdendo o pouco que se tinha alcançado?
Somos seres híbridos agora, parte homem parte máquina, e a parte máquina, sem sentimento, sem pudor, sem ética, sem compaixão está suplantando a parte homo.
Sobre essas “melhorias” advindas com o mundo high-tech, encerro este artigo parafraseando um dos personagens dos contos de K. Dick (o Philip), escritos no final do século passado, "Com tantas máquinas, computadores e pílulas para sentir, vejo que a humanidade se tornou um ato de se afastar de tudo que é humano".

Por Cristian Menezes - 2014

Nem os professores, nem a escola muito menos o aluno: o sistema



Quando se pensa em apontar culpados pelo caos que aflige a educação brasileira sempre se ouve frases prontas do tipo: “a culpa não é dos professores, que ganham mal, dão o sangue em salas superlotadas...” ou “a culpa não é dos alunos, que sequer sabem para que serve ir às aulas todos dos dias...” ou ainda “a culpa de tudo isso é do sistema, que ganha com a ignorância, afinal, povo burro é povo fácil de enganar...”. “Mas afinal quem é esse tal de Sistema para mim poder ir lá e falar umas verdades para ele?!”, diria o mais desavisado.
Pois é, também defendo, veementemente, que o problema da educação no Brasil não está no professor, não está no aluno, não está na instituição escola, mas sim no sistema, e, para satisfazer a curiosidade de quem procura o tal “Sistema”, descortiná-lo-ei.
Grosso modo, o sistema é tudo que sustenta e é sustentado pelo tipo de política econômica vigente, o tipo de regime impregnado no nosso dia-a-dia, na nossa cultura e até no nosso jeito de ser. O sistema não é quem, mas o quê, como, quando e onde. Está em tudo, mas não pode ser visto a olho nu.
A melhor forma de identificar “quem” no sistema, é acompanhar o que se desencadeia a partir e com ele e chegar àquele que ganha, que lucra, que se locupleta com o sistema. Se existe uma pessoa física (ou jurídica) culpada pelo sistema é esse o CPF (ou o CNPJ) dele.
Já pensou, por exemplo, o que seria do proprietário de uma rede de postos de combustíveis multimilionário se os adolescentes que trabalham de frentistas - os “linha de frente” contra os assaltantes e que ainda têm os produtos dos roubos aparecendo em seus holerites como adiantamentos -, se estes aprendessem tudo que é transmitido pelo professores em sala de aula, se fossem além e ainda pesquisassem por conta própria sobre outros assuntos, se lessem livros, se chegassem a uma universidade de boa qualidade, se fizessem uma pós-graduação, um mestrado, um doutorado...e se esses jovens perceberem que eles não precisam, necessariamente, ser frentistas, mas que podem chegar a ser o gerente do posto, o dono do posto, o dono da rede de postos, o proprietário da refinaria de petróleo...será que eles ainda assim iriam se prontificar a ficar segurando uma bomba de combustível, passando rodo no chão e jogando água no para-brisa de carro? Não. E sabe o que aconteceria se todos agissem da mesma forma, se erguessem a cabeça e começassem a não aceitar serem menosprezados, subvalorizados, idiotizados? O sistema quebraria.
Seguindo o caminho inverso, se o jovem se resigna com sua “condição”, pior, se chega a se sentir feliz em ser frentista, em estar empregado “no País do desemprego”, porque “todo trabalho é digno”, é aquele que não chega no horário na escola porque “larga” o serviço tarde, não presta atenção na aula porque está muito cansado, não participa das atividades, não faz tarefa, não lê...enfim, o aluno “dá nada”, este desmotiva o professor, desestrutura a escola, força uma falsa política educacional que coleciona números para sustentar o status quo no cenário econômico mundial, mas vira chacota para gringo na Copa do Mundo empunhando cartazes do tipo “Vamu pro équiça”.
Com aluno e professor desmotivados, a gestão da escola entra em crise. A escola vira um gueto, onde marginais se misturam às pessoas de bem, há comércio de drogas, prostituição e vandalismo da coisa pública. Uma escola-gueto hoje, duas amanhã...e a sociedade, em um médio espaço de tempo, está toda comprometida. Alunos de baixo rendimento tendem a ser profissionais medíocres, adultos irresponsáveis, pais de filhos de baixo rendimento...é um ciclo vicioso que fortalece o sistema.
Por que fortalece o sistema? Porque sociedade problemática gera esperança, palavrinha, aliás, odiosa, que significa um monte de gente esperando que alguém faça algo por ela que não pode, ou não quer fazer por si. Surgem os políticos com a “cura”. E quem sustenta o político e suas campanhas milionárias? Os donos dos postos de combustíveis, ou seja, o sistema.
O resultado desse esquema doentio não é só a violência, a pobreza, a fome, a doença...tem coisa pior. O mais cruel no sistema é que ele tira do homem, do jovem, da criança a capacidade de sonhar.
Os adultos de hoje não têm grandes sonhos, não pensam em descobrir novos mundos, salvar o planeta, construir uma máquina do tempo para voltar ao passado e fazer melhor...nossos heróis não voam, não têm superpoderes, não vestem capa vermelha por debaixo do terno, aliás, sequer usam ternos...são trabalhadores, empregados, frentistas...o sonho não passa do portão da cerca branca, com uma casinha azul no meio e cravos ao redor para o totó “regá-las”. Se a noção de sucesso é pífia, o sinônimo de felicidade para quem sonha pequeno só pode ser ínfimo: contar os dias da semana à espera do sábado para tomar umas “brejas” com os amigos, “queimar uma carninha” e mentir um pouco “pra aliviar o stress”.
Os filhos, por natureza, não sonham muito mais alto que os pais, já que o sonho possível de todo jovem é ser o que os pais são ou ser melhores do que os pais foram. Só que melhor do que um pouco é só pouco mais que pouco.
“No porão de todo empresário, funcionário público de carreira...cujo filho sonha ser roqueiro e viajar o mundo com uma banda, tem sempre uma guitarra empoeirada”, disse um psicólogo. E agora pergunto: e nós, o que temos no nosso porão da vida para inspirar nossos filhos?
Ah! Só uma ressalva. Nada contra frentistas, apenas lembrar que nos países ditos civilizados é uma profissão extinta há muito tempo. Nos países subdesenvolvidos resiste como um símbolo de poder, subserviência e autopreservação, afinal, quem arrisca abastecer o Corolla em um posto de combustível na Zona Leste do Rio de Janeiro depois das 10? O dono do posto é que não é.

Por Cristian Menezes - 2017

Quem disse que aprender é fácil?



Nossos comandantes, mandatários, entendidos em educação pregam, ultimamente, que a aprendizagem deve ser prazerosa, tanto para o aluno quanto para o professor. Disse certa feita ter enorme prazer em ensinar, aliás, não fosse essa satisfação com o metier já o teria abandonado, afinal, não há, no Brasil, outro retorno a quem se dedica à docência. Responderam-me que é importante, mas que o aluno também tem que sentir prazer em aprender, como se a satisfação em saber que o aluno se sente bem aprendendo não fizesse parte da minha satisfação em ensinar. Até aí tudo bem, mas pensemos um pouco mais no paradoxo Aprendizagem X Prazer.
Existe mesmo algo que nos traga real prazer totalmente isento de sacrifícios, de sofrimentos ou mesmo de certo desconforto, entendendo, é claro, as palavras sacrifício, sofrimento e desconforto como unicamente o contrário ao prazer?
Vejamos. Algo aparentemente simples como é a constituição de uma família é possível sem alguns sacrifícios? Creio que não. Manter uma relação por muito tempo é deveras difícil, até mesmo impossível para alguns. Mas todos os “sacrifícios” são recompensados pelo resultado, pela boa criação dos filhos, o carinho dos netos, o conforto de uma vida estruturada.
Onze em cada dez mulheres gostariam de chegar aos 40 com corpinho de 20 esbanjando saúde, beleza e vigor. Mas existe uma fórmula mágica para se chegar a essa satisfação sem sacrifícios? Certamente não. Não é nada fácil dedicar uma boa parte do tempo em academias, privar-se do convívio social, familiar para dedicar horas a longas caminhadas solitárias, privar-se de excessos, de certos prazeres para não ultrapassar os limites impostos pela balança e pela lei da gravidade.
Mesmo algo simples como aprender outros idiomas se mostra missão quase inatingível para quem tem dificuldades em seguir regras, manter rotinas, estabelecer metas. Sacrifícios, desconfortos, desprazeres para se alcançar objetivos que certamente trarão prazeres reais ao corpo e à alma.
Talvez o problema esteja apenas na nossa visão tupiniquim de prazer. Associamos prazer ao conforto pelo conforto, ao ócio pelo ócio, ao não fazer pelo não fazer. Talvez se apenas substituíssemos a palavra prazer por satisfação nos seria mais fácil assimilar o papel da educação na vida do educando, pois satisfação admite sacrifícios, desconforto, desprazer para ser alcançado.
Penso que para quem não tem a inteligência lógico-matemática, como diz Gardner, não é nada fácil aprender a fazer cálculos, todavia, nos tempos em que a educação era rara, cara e severa, portanto pouco prazerosa, os engenheiros construíram edificações que atravessaram os séculos e perduram até os dias de hoje. Em tempos de educação universalizada, barata e “prazerosa” não conseguimos construir viadutos que durem pelo menos até ser inaugurados. E isso não é uma realidade absoluta. Em países onde a educação é levada a sério bate-se recordes de altura dos prédios, invade-se o mar com obras que desafiam a lógica, modifica-se a natureza fazendo brotar o verde onde só se podia enxergar deserto.
Para quem não tem a inteligência linguística é difícil perceber como um “batatinha quando nasce...” se transforma em um “to be, or not to be: that is the question”. É praticamente impossível o discernimento entre “intenção e gesto”, como diz Chico, quando não se domina a semântica necessária para distinguir o pluralismo de sentidos metaculturais que podem conter um simples verso.
Em resumo, creio que nossos alunos precisam sentir satisfação em estudar, tendo a clareza de saber que adquirir conhecimento não é tarefa das mais fáceis, pelo contrário, adquirir conhecimento acadêmico, científico é desfazer-se, muitas das vezes, dos conhecimentos empíricos passados pelos pais, impostos pela sociedade, o que gera conflitos interiores, exteriores e até ulteriores à convicção do próprio ser.
Adquirir conhecimento envolve muito sacrifício e até um desconforto, mas que é compensado a posteriori por tudo que se pode com ele, por meio dele, realizar.

Por Cristian Menezes 2017

quarta-feira, abril 8

Poesia: Eu tempestade



Sempre que começa a formar tempestade, vou à janela para apreciar. Sim, para apreciar a tempestade. Porque me identifico com a tempestade, SOU tempestade. Amanhece tudo quieto, bucólico até…pássaros, claridade, leve brisa. Parece que o dia inteiro vai transcorrer normalmente e, de repente, a tempestade muda tudo. Ventos fortes começam a soprar não se sabe de que nem em que direção. Os pássaros buscam abrigo, as nuvens, que antes estavam quietas, imóveis, começam a se movimentar freneticamente, se juntam e se dissolvem até formarem grandes cúmulos, carregados, cinzentos, tamanha energia que até o sol, o Astro Rei, se esconde envergonhadamente. Quando caprichosa, e nem sempre é, começa com leves respingos, que vão aumentando, ficando cada vez mais fortes, “chuvisco engana trouxa” até cair como ‘canivetes’, surpreendendo, assustando, removendo, revolvendo, envolvendo a todos e a tudo…e aí, quando bem entende, não se sabe porque, não se consegue prever…simplesmente se acalma…vai enfraquecendo, compreendendo, se enamorando…e para, deixando o dia seguir seu curso.

Por Cristian Menezes – 04/20

O Poço Brasilis

Cena do filme O Poço (The Platform - 2019- Netflix - direção: Galder Gaztelu-Urrutia)


…então temos uma instituição prisional em um mundo distópico cujas celas são substituídas por níveis e em cada nível apenas dois apenados o dividem. Uma espécie de mesa desce pelo centro dos níveis trazendo, uma vez por dia, alimentos para todos os cativos. Mas não qualquer tipo de alimento, um esplendoroso banquete feito por mais esmerada cuisine et ses cuisiniers, impecavelmente limpa, higiênica e bem equipada. Detalhe: o cardápio é minuciosamente preparado com o prato que cada detento escolhe ao preencher uma ficha de entrada no Poço. O chef da esmerada cozinha é como um chefe deve ser: competente, exigente ao extremo e exageradamente detalhista, prepotente, narcisista, mal educado.
O problema é que, se cada um comesse apena o suficiente, o ideal para sua nutrição diária, a comida daria para todos, mas o que acontece não é bem isso, os prisioneiros dos primeiros níveis se fartam sem se importarem com os outros dos níveis inferiores. Como resultado, obviamente, de um certo nível para baixo a mesa chega vazia. Os detentos são trocados de nível aleatoriamente uma vez por mês. Ou seja, os que dão o azar de acordarem nos níveis mais baixos do Poço depois de um tempo sem nada para comer comem uns aos outros.
Pela tranquilidade e preocupação demasiada com o serviço, o chef aparenta nada saber, ou se importar com o que acontece abaixo dele. Assim como os cozinheiros e o resto dos funcionários do sistema. Os prisioneiros, diferentemente de uma prisão normal, podem ir parar lá por imposição por terem praticado algum crime ou por vontade própria. Ao serem admitidos no Poço, cada um pode levar um objeto e apenas esse objeto.
Pintado o cenário, muito se pode extrair das situações que se seguem na dogmática e angustiante película. Alguns falam da crítica aos sistemas capitalista e comunista; outros, sobre a condição humana; sobre o dilema filosófico entre o bem e o mal; sobre o problema epistemológico da ética e de sua práxis; sobre a natureza humana se hobbesiana ou rousseauniana; sobre o antagonismo do poder e da servidão; sobre a religiosidade ou falta dela; sobre um monte de coisas ou até mesmo sobre nada, “é só um filme de terror do tipo Jogos Mortais”.
Já que a interpretação é livre, então lá vai a minha: O Poço é um retrato nu e cru da nossa sociedade na atual situação de pandemia. Os primeiros níveis são as sacadas dos prédios luxuosos das grandes cidades, tem até uma certa semelhança com os níveis do filme espanhol. Quem está lá em cima tem comida à vontade, pois é só ligar ou acessar um aplicativo para que alguém entregue e ainda se sinta um “herói” por estar fazendo isso. Eles, os moradores, podem se dar ao luxo de ficar dias, semanas, meses…quem sabe nem voltar a trabalhar, eles podem, estão nos níveis mais altos. Longe deles consumirem apenas o essencial, consomem tudo, do bom e do melhor, todas as hortifrútis, toda a carne (item que já há algum tempo só eles consumiam mesmo), frutos do mar, silvestre, todo o enlatado, o empacotado, o embalado a vácuo...as máscaras e o álcool gel.
Abaixo dos níveis dos condomínios estão os níveis intermediários, sobrevivendo com as migalhas dos moradores dos níveis superiores. Não têm acesso a eles, mas deles dependem, de sua boa vontade em não defecar nas sobras depois de fartos e, por sorte, se verem impelidos ao altruísmo nem que seja só pra ficarem bem na self. São os porteiros, entregadores, trabalhadores em farmácias, hospitais, caminhoneiros…os tidos como “serviços essenciais”. Essenciais para que mesmo? Para que o sistema que alimenta e engorda os lá de cima não entre em colapso. Estão morrendo, mas não de fome, então tá bom. Peças uteis.
Abaixo de tudo isso, nos níveis abissais do sistema social, a massa que se empoleira nas favelas, nos ônibus, nos metrôs, que se sem pandemia já vivia mal, com ela estão à mingua. Estão morrendo da falta de alimento, da falta de medicamento, da falta de saúde básica, da falta de UTI, da falta da merenda da escola pública, de bala perdida, da falta de uma pedra de sabão para lavar as mãos…e do tal do vírus, também.
“Uffaaa!!!” grunhi um internauta na frente do laptop da maçãzinha no septuagésimo sexto andar. “Ainda bem que não tem os últimos níveis com gente comendo gente”. Tem sim, desavisado. É que daí de cima não dá para ver! O Poço Brasilis é fundo, mais fundo que O Poço. Eles estão pelos becos, pelas escadarias, debaixo das pontes, viadutos e ocas de papelão. Estão matando uns aos outros para roubar a quentinha, o corotinho, a pedra, o cobertor…só não estão se comendo, pelo menos não literalmente. Ainda. Mas já estão incinerando…
E o chef du cousine? La no Planalto Central, em sua cuisine et ses cuisiniers. Acima do primeiro nível, no nível zero, inatingível, inalterado. Dando ordens e gritando com seus subordinados, preocupado apenas com o cardápio, com a receita, com a apresentação, nem aí para quem vai comer dos pratos ou não. A preocupação dele? Com o cabelo na panna cotta, ou seja, com a imagem, com o que vão dizer os jornalistas hoje sobre o penteado dele. E ai daquele cozinheiro que ousar questioná-lo e dizer que o molho velouté está sem sal ou que o sous chef está passando mal, com dor na garganta e febre… “é só uma gripezinha. Volta pro trabalho, pô!!!”, berra.

Por Cristian Menezes – 04/20

Poesia: Por favor, me deixem ir...



A todos que me prezam e os que desprezam, em silêncio, aos poucos que me amam, e aos que nem tanto, aos que cuidei, e aos que descuidei também...só lhes peço uma coisa: me deixem ir quando a minha hora chegar.
Não me tirem o colorido da vida, ofuscando minha visão com a palidez de um quarto branco; não me ensurdeçam com o bip de máquinas, tirando-me o prazer de ouvir uma boa música, as palavras de quem gosto de escutar e dos que não gosto também, estarão me privando de minha máxima predileta, “melhor ouvir isso do que ser surdo!”;
Não turvem meu olhar com drogas licitas, estarão tirando o prazer que tenho de inebriá-lo com as ilícitas, de viajar só observando o mundo a minha volta, as pessoas e suas loucuras, as loucuras e suas pessoas;
Não deixem minhas mãos atadas a tubos frios, debaixo de cobertores quentes, quero apertar uma mão, qualquer mão que se achegue à minha, nessas horas acho que pouco importa, qualquer mão é uma mão amiga, não há, como para Buarque, “distância entre intenção e gesto”, só gesto cheio de intenção;
Por fim, não tirem, rogo-lhes, o prazer sem igual do sabor das coisas, de todas as coisas, das pequenas coisas, quero sentir, nem que pela última vez, o doce sabor da água tocando meus lábios, não é só água, acredite-me, nunca é só água, é toda uma sensação maravilhosa que vem junto, lembranças e sonhos, a saliva depois de um bom prato, o transbordo de um bom copo, o fluido de outras bocas, o porvir de outros desejos;
Não se deixe enganar, quando a hora chegar, pelo meu semblante sôfrego, estarei feliz se assim o for; minha respiração não estará se esgotando, mas se enchendo de outros ares;
Meus lábios não emudeceram, apenas me cansei de falar dos defeitos dos outros e estarei pensando nos meus;
Meus punhos não se cerraram por impotência, cerrei-os propositadamente para entrar em outro lugar socando o ar como faz o campeão no pódio;
Por fim, quando cerrar os olhos, não pense que eles estarão se fechando para a vida, pesados de todas as injustiças e tristezas que viu, estão apenas, condescendentemente, acenando para todos com um “até logo!”, “em breve nos veremos novamente”.

* Para minha mãe-avó Flora, com saudades

Por Cristian Menezes

Artigo: Fé e razão, tão perto e tão longe



Para eu, reles mortal e observador do mundo, a diferença entre Fé e Razão nunca esteve tão gritante desde julho de 1789, auge da Revolução Francesa. Tomando como ponto de partida o pensamento do americano H.L. Menvhekn de que fé é “uma crença ilógica naquilo que não se pode provar”, e a do filósofo Pascal de que razão seja “a consciência intelectual e moral da percepção das coisas” surgiu um paradoxo na minha cabeça com os últimos acontecimentos no País.
Primeiro temos o caso João de Deus. Um monstro com a alcunha de “de Deus” flagrado com armas, 50 milhões de reais em dinheiro em malas e bancos, 1,6 milhão de reais em pedras preciosas escondidas em diversas propriedades e inimagináveis 40 anos de prática da “fé” que estão resultando em cerca 6oo relatos de abusos sexuais recebidos pela Promotoria de Goiás, sendo que destes pelo menos 255 considerados de supostas vítimas, destas, 23 tinham entre 9 e 14 anos na ocasião dos fatos,  28 entre 15 e 18 anos, e 70 com idade de 19 a 67 anos, entre elas, a própria filha que teria sido abusada desde os 10 anos de idade. Para tentar se livrar das grades contratou um dos mais requisitados, e caros, advogados criminalistas do País, Alberto Toron.
Do outro lado da lâmina que lacera até a mais profunda fé, os relatos vergonhosos de abusos sexuais de crianças, adolescentes e, agora, freiras de uma Igreja que, em nome de Deus, vem há décadas acobertando toda essa promiscuidade fazendo jorrar rios de dólares, euro, franco suíço, reais entre outas moedas de várias nações que, fraternalmente, abriram suas portas ao cristianismo católico e toda sua sordidez. Vemos um Papa, o Bento XVI, acuado, porém resignado em fazer alguma coisa, mas pressionado e, logicamente, temeroso por, depois de todos os esforços para tentar uma “limpeza” ética-moral na Milenar Congregação, acabe como tantos outros que o antecederam, que por bem menos que isso amanheceram espumando pela boca e tendo espasmos simples e comodamente diagnosticados como parada cardíaca, mais uma.
Agora imaginemos uma notícia hipotética, uma notícia fake como chamamos. Um restaurante famoso e com décadas de tradição é autuado pela Vigilância Sanitária depois que agentes de saúde descobrem que o principal ingrediente dos cozinheiros, o “tempero secreto” era, nada mais nada menos, que sêmen desidratado dos próprios metres. E o dono sabia, mas como o movimento era grande, sempre fez vistas-grossas para o tempero exótico. “Ecaaaaa” diria um frequentador do restaurante, que jura de pés juntos nunca pô-los mais naquele lugar “nojento”. O desenrolar do caso é demissão em massa, fechamento do estabelecimento, funcionários e proprietário indiciados por algum tipo de crime e por fim alguns deles sendo conduzidos para a cadeia.
Agora, numa comparação absurda, vejamos. Por que que no caso do restaurante os fregueses ao tomarem conhecimento dos “abusos” dos chefes se revoltam e, de cara, abandonam o estabelecimento e no caso do João e da Igreja os “salões” continuam legalmente abertos e lotados? Por que os envolvidos diretamente, no caso os cozinheiros, são punidos com demissão imediata e sansões legais, e no caso do João e da Igreja tudo continua como sempre, aquele bando de gente vestindo o branco da pureza com terços nas mãos e almas maculadas e negras, manchadas pela culpa do silêncio, da omissão? Por que que no caso do restaurante, o proprietário tem observado sua parcela de culpa na atitude de seus subalternos mesmo sem um envolvimento direto, e no caso do João e da Igreja, o Chefe Maior, Ele, não é sequer cogitado como sendo, pelo menos, corresponsável por nada? Ninguém sequer questiona “como Ele pôde permitir isso?”
Pois eu questiono. Como Ele pôde permitir isso? Tamanha atrocidade com tanta gente inocente e em nome Dele, dentro da Casa Dele? Um atentado contra uma pessoa feita por um clérigo, uma “pessoa de Deus” é infinitamente pior do que o mesmo atentado feito por um ‘mundano’, um laico. É como um assassinato cometido por um morador de rua analfabeto e um assassinato cometido por um advogado. O advogado é muito mais culpado que o mendigo, porque este sabia exatamente a extensão de seus atos e suas punições, aquele não. Um estupro praticado fora dos muros de uma instituição religiosa machuca o corpo e fere a alma da vítima. Mas um abuso praticado dentro destes mesmos muros, em que se acredita serem oásis no deserto de toda maldade do mundo, destrói o corpo e mata a alma, pois arranca de dentro do peito a única coisa que faz com que o ser humano possa superar tamanha crueldade: a esperança.
“Usava de forças do bem para fazer o mal”, li numa reportagem de uma respeitada revista de circulação nacional, uma argumentação defensiva no caso do João. “Eles são tirados de suas igrejas, do convívio com seu ‘rebanho’ e são banidos para lugares distantes”, argumenta o Alto Clero. Lugares distantes? Distante de onde, de que, de quem? Distante das grandes capitais? Quer dizer que os padre pedófilos que abusaram de crianças e adolescentes em São Paulo, Rio de Janeiro são enviados para, sei lá, Rondônia? Ji-Paraná, talvez? E por que cargas d’água isso vai resolver alguma coisa? Aqui não tem crianças e adolescentes suscetíveis ao ataque destes monstros? Ou pensam eles, os magnatas de bata, que a pedofilia está ligada ao clima, à posição geográfica com relação à Linha do Equador? Ao fuso horário? Estupra em Belo Horizonte, mas não estupra em Ji-Paraná porque o clima não favorece? Sinceramente…valha-me Deus…


Por Cristian Menezes – 12/03/2019

Enfrenta a ti e ao mundo para ser feliz

                                         Pawel Kuczynski - Desenhista e pintor polaco

Nunca deixe ninguém te dizer que você não pode ou não é capaz de fazer alguma coisa. Nunca deixe que pessoa nenhuma no mundo te aquiete o desejo de buscar, de descobrir, de querer mais, de ir além. Um poeta disse certa vez: “de falar eu deixo, mas não deixo de pensar”. Deixe de falar, se preciso for, se teu algoz o supera em força, em poder. Deixe de falar se os teus lábios te porão em desfavor àqueles que te deram a vida, a forma. Mas não deixe nunca de pensar. De escutar aquela vozinha lá no fundo do teu íntimo, aquela voz tão infantil quanto sua inocência pode ser, pois a alegria de viver é dos que menos sabem e não dos que mais conhecem.
Nunca acredite naqueles que te menosprezam, que te humilham, que te tiram a esperança. Errados estão eles em não acreditar em você, no tempo que você precisa para fazer o que precisa ser feito, que pode ser diferente do deles, mas não menos necessário. Aqueles que vociferam contra ti só cumprem o ciclo a que foram impelidos a fazer parte. Foram impelidos e não forçados, então você também não é forçado a fazer parte dele. Liberta-te desse ciclo sombrio e cria teu próprio ciclo de luz para com os teus.
Lembra-te: “O que negas te subordina, o que aceitas te transforma”. Penso que Jung quis dizer que negar que somos menosprezados, discriminados, humilhados até, é, justamente, o que nos impele a entrar no ciclo de menosprezo, discriminação, humilhação. Já por outro lado, se aceitamos que essas coisas acontecem ou aconteceram conosco, seja por desconhecidos, seja pelos “colegas” de escola, seja pelo chefe no trabalho, seja, até mesmo, pelos pais, parentes próximos, habituais frequentadores de ciclos, dos mais diversos, dos mais perversos, aí sim podemos nos transformar, sair do ciclo, sermos melhores hoje mais do que ontem e menos do que seremos amanhã.
Quer outro jargão? Herói não é aquele ser sem medo, mas aquela pessoa que enfrenta os seus medos e as consequências desse enfrentamento. Seja o seu próprio herói. Ame, odeie; ganhe, perca; bata, apanhe; grite, cale; faça o que tiver que fazer, mas sempre com a cabeça erguida de quem fez o seu melhor, nunca com os ombros pesados dos que fogem sem ter sequer visto, mensurado o tamanho, a força do oponente.
Por fim, nunca se arrependa. E a fórmula para isso é fácil: nunca faça nada que possa vir a se arrepender. Que suas armas para enfrentar a vida seja a lealdade, a verdade, a determinação, a coragem, o amor, o carinho, o cuidado, a educação, a afabilidade, a dignidade, a justiça…não pense que ao escolher essas armas para travar o bom combate estarás em desvantagem no campo de batalha. Lembre-se sempre que a árvore grande, forte, imponente tomba e tem suas raízes, por mais profundas que sejam, arrancada do chão na forte ventania, mas os finos, frágeis e flexíveis galhos de um pequeno e humilde arbusto geralmente resiste aos piores tornados. Usa de todo conhecimento que puderes adquirir ao longo da vida para enfrentar o mundo naquilo que ele é melhor em fazer: te entristecer.

Por Cristian Menezes – 11/2018

Ensaio: A Consciência de si ontem, hoje e amanhã

                                           Pawel Kuczynski - Desenhista e pintor polaco

“Ninguém é o que ele era nem vai ser o que ele é agora”. Ouvi essa frase de um personagem em um filme que assisti recentemente chamado Marjorie Prime. O filme todo é muito intrigante, mas essa frase me fez refletir muito. Ela brinca com o tempo verbal, mas principalmente nos faz pensar sobre a inconstante dialética que rege nossas vidas. “Ninguém é o que ele era…”, essa parte da frase me parece a versão intimista e mais didática da “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio”, do filosofo Heráclito. Na segunda vez que se queira entrar no rio, nem as águas, nem a pessoa são mais as mesmas. Assim como não somos agora o que fomos a um minuto atrás, ou mesmo quando iniciamos a frase. Deixamos de ser quem éramos no segundo em que nos tornamos lembrança de nós mesmos. A experiência vivenciada nos muda, para sempre, e mesmo que repitamos algo que fizemos, mesmo que nos esforcemos para repetir uma ação, um gesto, uma frase…nós, já não somos mais o mesmo. Ao repetir um erro, por exemplo, já não somos mais inocentes, “virgem” daquele tipo de erro, perdemos o argumento de não sabermos o que estávamos fazendo, pois já o sabíamos, já o fizéramos antes e isso muda tudo. Muda, inclusive algo dentro de nós.
O erro repetido, portanto, é mais errado que o erro anterior, o primeiro erro. Isso também serve para o acerto. A repetição do que fazemos certo tem maior valor, pois o primeiro acerto pode ter sido motivado pelo acaso, mas o segundo o foi pela experiência do primeiro, antes poderíamos ser apenas presunçosos, corajosos, petulantes até…mas a repetição do acerto é motivada pela consciência plena de ela ser o que ela é, a busca consciente do mesmo resultado. O eu de hoje não pode cometer o mesmo erro ou acerto do eu passado, nem o erro ou acerto é mais o mesmo, nem eu sou mais o mesmo ao praticá-lo. A água do rio e eu não somos mais os mesmos…
A outra parte da frase, “…nem vai ser o que ele é agora”, continua a nos arrastar vida a fora com a marca indelével de nossa responsabilidade por nossos atos, sejam eles bons ou ruins, erros ou acertos. Nunca conseguiremos ser o que somos, pois no segundo seguinte em que nos vislumbremos como desejo, anseio, sonho, perspectiva…seremos a soma do que fomos com o que somos hoje. Seremos nossos erros e acertos mais a consciência deles, sobre eles. É impossível pensar em voltar a praticar um erro ou acerto isentando-nos da reflexão sobre nossas ações e suas consequências.
Sobre o peso de nossas ações, repetir um acerto, uma atitude positiva diante da vida ou de outrem nos engrandece e nos eleva, digamos, espiritualmente, enquanto seres pensantes e reflexivos. Da mesma forma, um erro, uma atitude negativa nos diminui em dobro, mesmo que, para conseguirmos praticá-lo, tenhamos que nos cobrir com o manto da hipocrisia, o que, de alguma forma, pode até servir para amenizar o sentimento de culpa para conosco, mas não para com os outros. Podemos, portanto, no futuro sermos melhores ou piores, mas nunca exatamente quem somos.


Por Cristian Menezes – 22/04/19

Ensaio: Heróis de Ontem, Heróis de Hoje

                                                                        Paweł Kuczyński - Desenhista e pintor polaco

Houve tempos em que heróis singravam os mares nunca antes navegados em busca de novos mundos; parcos exércitos contra um sem-número de inimigos, três centenas contra dezenas de milhares a defender com lanças e escudos o indefensável, uma guerra já perdida; cavaleiros intrépidos investiam contra o que viam pelas frestas de suas armaduras reluzentes a respingar honra e gloria em nome de reinos invisíveis; alexandres erguiam alexandrias sobre almas pagãs; pequenos pilotos em grandes aeronaves silenciavam guerras com gritos de desespero e dor. Grandes feitos, alguns gloriosos outros nem tanto, mas sempre por um bem maior, um ideal que parecia valer a pena para tantos.
Os heróis de hoje travam outras batalhas, em outras guerras e com outras armas. Singram os mares da própria consciência, não em buscam de novos mundos, pois todos já foram explorados, buscam a si próprios; não mais poucos contra muitos, são todos contra todos por sabe-se lá o quê; investem uns contra os outros despudoramente despidos de quaisquer virtudes, sem honra, sem glória; pelas frestas das armaduras de hipocrisia só se veem moinhos de esperanças que insistem em ficar de pé, mesmo golpeados; joãos, josés, marias não erguem nada, nada constroem que se dignem empostar seus nomes; todos são pilotos, todos são alvos dentro de dantesca e única nave decadente e contaminada, só os gritos ainda ecoam em suas mentes.
O herói de agora é aquele que, apesar de tudo, consegue chegar ao final com os seus ao seu lado. A batalha é para manter a dignidade, o próprio respeito. Os inimigos são a cobiça, a ganância, a deslealdade, a falsidade e os falsos profetas, que vociferam contra vícios aos quais eles mesmos sucumbiram, que se afogam em águas que antes, no início, juraram manter-se distantes.
Somos todos desgarrados soprados pelo Minuano carregado de saudade. Viramos copos, viramos mundos, mas nunca mais nada será como antes, profetizou o poeta. Como na antiguidade, a pitonisa veio, e vem, em forma de pele, osso e grandes orelhas, sem passado e sem presente, e ninguém entendeu, e entende, a mensagem, pois não estava nas palavras balbuciadas em um castelhano etílico, mas na imagem de si mesmo. O que dizia a mensagem? “Eu sou você amanhã”. E ninguém estava, e está, lá quando a hora dele chegou, e chega, como havia e há de ser. Um herói desgarrado, ou um desgarrado que sonhou, no final, ser herói?
Desgarrados agora somos todos nós. E o que o vento traz é só a lembrança de quando todos se sentavam em torno da távola retangular imensa, de madeira, com tampo espesso, a esperar pela sopa de ossobuco com Milharina servida em pratos fundos enfileirados no parapeito da janela, pela pizza feita na forma de fogão com tampa com garras de filtro de ar de carro velho, pela carne assada bem passada, quase queimada e a maionese sem maionese.
Desgarrados, náufragos em um mar de incertezas fitando, ao longe, pequenas ilhas, terra-firme, cujos olhos marejados não permitem, sequer, distinguir se são reais ou apenas miragens.

Por Cristian Menezes 2019

Ensaio: Destruindo Castelos



O 14 de julho de 1789 é marcado pelo que até hoje é conhecida como a Queda da Bastilha. Uma fortaleza medieval utilizada como prisão foi posta abaixo depois de libertados seus poucos prisioneiros, apenas sete para ser mais preciso. O povo oprimido pelo reinado de Luiz XVI derrubou com as mãos, tijolo a tijolo, a antes inexpugnável construção como símbolo maior da Revolução Francesa, que viria a mudar os rumos de nossa história. Não bastou só a deposição do Rei, o fim de uma era de exploração e julgo, era preciso também destruir o símbolo maior do absolutismo. Exatos dois séculos mais tarde, em 1989, telespectadores do mundo todo assistiram o povo ‘armado’ com pás e picaretas derrubarem outro “castelo”, o muro de Berlim, que simbolizava a divisão entre o capitalismo norte-americano e socialismo soviético. Não bastou a Perestroika (reconstrução em russo), o fim da Guerra Fria, era preciso destruir o símbolo maior da divisão mundial.
Os dois exemplos servem para ilustrar que não adianta acabar com a ‘coisa’, com as ideologias hereditárias é preciso também destruir o seu símbolo maior, pois poucas pessoas sabem quem foi Robespierre ou Gorbachev, mas todos se lembrarão ad infinitum da Queda da Bastilha e do Muro de Berlim.
Penso que valores morais ou éticos seja como um conjunto de ideias que cada um vai cunhando na tábua da alma ao longo da vida. Deve funcionar como leis, que não podem, ou não devem, ser mudadas, alteradas sob pena de se perder a auto coesão ideológica. Sendo assim, se elejo, cunho na minha tábua ser um defensor intransigente da verdade, por exemplo, logo, e por consequência, me torno um inimigo da hipocrisia. E como tal, não posso e não devo deixar de pé ‘castelos’ onde ela possa se refugiar, pelo contrário, assim como a Bastilha e o Muro de Berlim, devo pô-los abaixo e que isso possa servir como símbolo maior de minha luta em defesa da verdade.
É incrível que, em pleno século XXI, o tão esperado pelos visionários de plantão desde séculos imemoriáveis, ainda deixemos imolados castelos de hipocrisia construídos sob a égide de uma pseudoverdade. A família é certamente um destes castelos. Pessoas de fora e mesmo os de dentro desses castelos, quando fecham os olhos para o que de pior pode estar se escondendo dentro de suas masmorras, não percebem, ou não querem perceber, que apenas alimentam alguns parasitas de um monstro ainda maior, mais perverso.
Enquanto fecharmos os olhos para o abuso sexual, para o incesto, para a violência doméstica, para a infidelidade coronelista - aquela em que o “chefe” da família se acha no direito de ter outras famílias, quantas ele puder “sustentar” -, e em nome de uma falsa estabilidade parental, em nome de uma união carrasca, torpe, que aprisiona almas em círculos de silêncio, dor e vergonha…enquanto alimentarmos esses monstros dentro deste castelo que chamamos de família, enquanto não vermos que o que entendíamos por família mudou tanto que bem poderia já se ter inventado outro verbete para este novo grupo de indivíduos…podemos até combater a ‘coisa’, mas não vamos expurga-la de nossas vidas, de nossa sociedade.
É preciso ter coragem para enfrentar certos dogmas sociais, mas pouca gente consegue mensurar a força, o sacrifício que fazem para mantê-los intocáveis, inexpugnáveis, invioláveis. As vezes precisamos desprender muito mais energia para esconder do que para revelar, para suportar do que para se opor, para calar do que para gritar, para engolir do que para cuspir…muita das vezes o que faz a diferença é só buscar no âmago de quem somos, de quem nos propusemos ser aquela tábua de nossos valores mais profundos, mais arraigados, aqueles que ao cunhá-los fizemos uma verdadeira vala e mostrarmos para nós mesmos, e cobrarmos de nós mesmos…e, sinceramente, que se dane se a palavra resiliência está na moda, é preciso não lidar com os problemas, mas combatê-lo de frente; não adaptar-se, mas enrijecer-se se a mudança for para pior; não resistir, mas persistir e suplantar; e, por fim, não apenas superar obstáculos, os ditos castelos, mas destruí-los por completo, reduzi-los a pó.

Por Cristian Menezes – 8/05/2019

Poesia: M’alma, o tempo e você

                                          Pawel Kuczynski - pintor e desenhista polaco


Não eu, mas minha alma resolveu te esperar
Não no meu tempo, mas no tempo dela
Sei lá quanto tempo do meu tempo isso pode levar
Só sei que no tempo da minha alma pode ser muito tempo

Não eu, mas minha alma resolveu te dar uma chance
Não chance para mudar o corte do cabelo, o estilo das roupas…
Mudar, para minha alma, tem a ver com forma de pensar, de agir, de ser…
Não mudar de cidade, estado, país…mudar o âmago, o profundo…o destino

Não eu, mas minha alma resolveu te esperar
Não como eu, que te esperaria por um dia, um mês, um ano…
Minha alma pode te esperar por décadas, séculos, milênios

Não eu, mas minha alma sabe que pode te encontrar de novo
Não numa esquina, num bar, numa festa…
Mas em outra pessoa, outro ser, outra era

Não eu, mas minha alma insiste que foram feitos um para outro
Me contraria em dizer que não foi um fim, apenas um longo, longo “tempo”
Um “tempo” num lugar onde o tempo não existe

Não eu, mas minha alma garante que já te conhecia
E que o tempo em que estivemos juntos
Foi um dos reencontros depois de muito, muito tempo

Não eu, mas minha alma diz que desde o primeiro encontro
Você e ela mudaram muito, se aproximaram mais
Mas ainda não o suficiente para viver juntos por uma vida

Não eu, mas minha alma resolveu te esperar
Não porque quer, confidenciou, mas porque precisa
Não pelos encontros e desencontros aqui, onde o tempo tem tempo certo para acontecer
Mas porque em algum momento, num lugar onde não há tempo
A tua alma e a minha eram uma só

Por Cristian Menezes em 03/2020