sexta-feira, outubro 2

Sobre o falar e ouvir

 

                            Obra do desenhista e pintor polonês Pawel Kuczynski

“Se um dia você tiver alguém, tente descobrir o que seus amigos, seus pais, sua mãe especialmente, o que eles realmente pensam da pessoa com quem você pretende passar a vida. Porque não vão falar, você vai ter que extrair essa informação deles. Mais nesse assunto especificamente do que tudo eles têm perspectivas, eles podem olhar de fora e absorver tudo, enxergar o relacionamento como ele realmente é. E se sentirem que está fazendo besteira, faça de tudo para te contarem ao invés de serem educadinhos, senão você vai acabar como eu, sentada num jardim em algum lugar com uma dessas pessoas próximas a você falando “eu te avisei” por horas e horas sem perceber que até então ela nunca tinha dito nada”. O texto é um trecho do diálogo entre uma senhora suspeita de matar os amantes do marido e uma policial na série europeia Criminal – Reino Unido. 

Houve um tempo em que as pessoas próximas, os amigos, os pais falavam sobre o mundo, sobre suas experiências, sobre relacionamentos, opinavam e as pessoas escutavam e até tentavam, na medida do possível, agir de acordo, mas esse tempo passou. Depois, os amigos e os pais falavam e as pessoas apenas fingiam que escutavam, e esse tempo também passou. Com o passar dos anos, as pessoas simplesmente não davam mais ouvidos. E ai chegou o tempo em que os amigos, os pais passaram apenas a observar, sem falar, sem opinar mais nada. E chegou o agora, em que os amigos e os pais simplesmente não ouvem e não falam nada, ninguém tá nem aí pra paçoca. E ninguém está tentando ser “educadinho” não. Não estão querendo ser nada.

Ninguém observa mais ninguém além de si mesmo, ninguém mais opina sobre nada da vida de quem ama. Tem gente que diz que esse é o melhor momento, o momento ideal da história em que cada um só cuida de si mesmo e ninguém “perde tempo” se preocupando com a vida do outro. Todos viraram aqueles três macaquinhos que um tampa o ouvido do outro, que tampa a boca do outro que está com as mãos nos olhos. O politicamente correto chamando inanição social de respeito mútuo.

No passado, quando um amigo, um parente observava que a pessoa iria dar um passo errado se via na obrigação de alertar e a pessoa em questão se via no dever de ouvir. O que hoje chamam de se intrometer na vida alheia, parecia o certo a fazer. É como se uma pessoa fosse cruzar a rua sem olhar para o lado e uma outra pessoa que estava observando, ao perceber que o atropelamento seria inevitável, grita e alerta o desavisado, que ouve e depois agradece por ter lhe salvo a vida. Mas o que mudou tanto de uns anos para cá? O carro que cruza as ruas em alta velocidade deixou de ser um perigo em potencial? Não, creio que não. A pessoa que cruza a rua displicentemente deixou de estar em perigo ao fazê-lo? Não, continuamos a ser um perigo para nós mesmo quando não temos a visão geral do momento. Aquele que observa deixou de sentir compaixão pelo outro, de querer ajudar, de ter vontade de impedir que algo de ruim aconteça aos que amam? Não, quero crer que não, isso seria o mesmo que afirmar que nos distanciamos tanto de nossa humanidade que não nos reconhecemos mais como humanos.

Então o que está acontecendo com o falar e o ouvir entre pessoas que se amam, que se respeitam e que querem o melhor para o outro? Ruído. Ruído demais. Nada atrapalha mais a comunicação entre as pessoas que o ruído. E sobre ruído podemos dizer que vivemos hoje uma verdadeira Babel de vozes, ideias, ideologias, conceitos, visões, previsões…

Li ou ouvi, o ruído não me permite afirmar, uma frase interessante sobre relacionamento em crise. “Os amantes ouvem com o coração. Quando duas pessoas que se amam não falam mais um com o outro, mas gritam, significa que seus corações estão tão distantes que mal podem se ouvir”. Ruídos. Ruído da insatisfação, frustração, rotina, descuido, correria, incompreensão…ruídos.

Por que não ouvimos mais aqueles que nos amam e que apenas querem nos ajudar? Ruídos. Ruído do medo da desaprovação, descobrir a razão pela qual nos importamos tanto com o que pensam sobre nós, constatar a nossa dependência dos outros a ponto de não conseguirmos fazer diferente, a impotência da razão sobre os desejos, a falta de amor próprio, ter que ouvir, depois de tudo, o “eu te avisei” molestando os ouvidos como um entoar de feitiços em um ritual satânico…ruídos.

E por que aqueles que nos amam não falam mais? Ruídos. Ruído de parecerem prepotentes, medo de afastar os que amam por causa dos ruídos deles, o famigerado choque de gerações, receio de expor que sabem muito do ontem, talvez pouco do hoje e praticamente nada do amanhã, pavor de serem abandonados num canto qualquer como uma relíquia daquelas que todo mundo tem uma em casa, não consegue se livrar pois tem um valor, mas que ninguém sabe exatamente qual é…ruídos.

 

Por Cristian Menezes – 9/2020

terça-feira, setembro 22

O caso Tamayo e o niilismo ético na pós-modernidade

 

                                                   Ilustracão de Pawel Kuczynski

Mulher é presa por tráfico de drogas e envolvimento com prostituição. Esse tipo de notícia é, infelizmente, até bastante comum em nosso País. Mas por que, então, nesse momento e uma mulher em especial tem incomodado tanta gente? Explicar essa comoção de parte da sociedade com o caso da “modelo” Flávia Tamayo é mexer em águas profundas e lamacentas de nossa sociedade pós-moderna, mas vamos lá. Flávia foi presa em julho, em um hotel no Espírito Santo, suspeita de fazer parte de uma organização criminosa de garotas de programa de luxo que atuavam no tráfico de drogas. Mas até aí ainda continua um caso corriqueiro que chega aos milhares nas delegacias Brasil afora todos os dias, não fosse, e aí começa cair a cortina, por um detalhe: garotas de programa “DE LUXO”. Esse “DE ‘LUXO” é que faz toda a diferença. Flávia Tamayo foi, nada mais nada menos, que capa da Playboy, umas das revistas, se não a revista, masculina mais aclamada em todo o mundo. No Brasil, a norte-americana Playboy, distribuída pela Editora Abril até há alguns anos, despiu e fotografou ícones de popularidade tupiniquim, celebridades, socialites…que acabaram virando símbolos sexuais, objeto de desejo de onze em cada dez compradores da revista. Entre as 451 capas brasileira figuraram, por exemplo, Luma de Oliveira, Betty Faria, Luana Piovani, Vera Fischer, Xuxa Meneguel…e a Flávia Tamayo. O que elas têm em comum? A Beleza estonteante. O que elas não têm em comum? A maioria, claro não todas, das mulheres capas da Playboy se deram bem na vida. Ou casaram bem, ou se tornaram apresentadoras de TV com salários de seis dígitos, ou viraram empresárias e vivem confortavelmente em algum paraíso tropical…mas a Flávia não. A Flávia foi transferida do presídio de Cariacica, no Espírito Santo, para a Capital Federal, onde recebeu habeas corpus e passará a usar tornozeleira eletrônica até o fim do processo.

Ainda está lamacento? Pois bem. A questão aqui é que a sociedade costuma julgar as pessoas pela aparência, pelo status social, pelo cargo que ocupa. Aparência é tudo e nunca foi tão tudo quanto agora. Quando se vê uma mulher bonita, linda, capa de revista, costuma-se agregar a ela caráter, um caráter bom que pode não estar, necessariamente, com ela, fazer parte dela. Beleza estética é beleza estética e só. Nasce-se com ela, ou, agora, adquire-se, implanta-se. Já o caráter é outra coisa. Caráter, segundo alguns dicionários, tem a ver com a caracterização do próprio sujeito, índole, temperamento, personalidade, formação moral, características que podem ser boas ou más, mas que distinguem uma pessoa, um povo…popularmente quando falamos de caráter estamos nos referindo a características positivas, valores morais. Talvez por isso que nas notícias vinculadas em mídia nacional o nome Flávia vem quase sempre acompanhado de comentários do tipo “mulher que desperta desejos em homens da alta sociedade” ou por insistentemente ser tratada como modelo, assim, sem aspas. Teria isso corroborado para a concessão do habeas corpus diferentemente de tantas outras de, digamos, menor valor estético, que são flagradas com porções de droga nas genitálias tentando entrar nos presídios e por lá mesmo são trancafiadas e esquecidas?

O caso Flávia Tamayo lembra muito outros dois que tiveram grande repercussão pelo mesmo motivo, o da jovem Suzane von Richthofen, aquela loirinha, linda, educada…que matou os pais. É como se a sociedade se recusasse a aceitar que uma mulher branca, de olhos claros, cabelos perfeitos, corpo curvilíneo…pudesse ser assassina. Também lembra o caso do assassinato da Daniela Perez, filha da Gloria Perez, pelo moreno alto, bonito e sensual Guilherme de Pádua. Ninguém queria acreditar que foi ele quem matou a atriz…mas foi.

Em uma sociedade que está beirando o niilismo ético, é como se as pessoas quisessem desesperadamente ver no “melhor” que a sociedade pode produzir a boia salva vidas de valores perdidos onde possam se agarrar para não se afogar no mar de degeneração moral. O problema é que pessoas bonitas, com traços simétricos, brancas, altas, loiras, magras, com olhos azuis ou verdes não são, obrigatoriamente, sinônimos de pudor, honestidade, afabilidade, respeito, sinceridade, responsabilidade, lealdade…assim como pessoas feias, com traços assimétricos, negras, baixas, cabelos encaracolados, gordas, olhos castanhos não são sinônimos de despudor, desonestidade, desrespeito, falsidade…tudo é estereótipo criado pela mesma sociedade que agora luta para respirar em meio a uma poluição ética caótica criada por ela mesma. Tão errado quanto, é pensar que o melhor da sociedade só pode estar nos condomínios luxuosos, nos edifícios suntuosos, dirigindo carros caros, nas universidades particulares, nos clubes privados…o melhor da sociedade pode estar nas favelas, nas meias-águas, andando de bicicleta, nas escolas públicas, nos piscinões…o melhor da sociedade pode estar em qualquer lugar ou em lugar nenhum.

Resumindo, o incomodo causado pela prisão da Flávia Tamayo não tem nada a ver com a Flávia Tamayo, mas com a sociedade que esperava mais da Flávia Tamayo do que realmente Flávia Tamayo é. O problema é a imagem positiva que a sociedade esperava da Flávia Tamayo como reflexo dela mesma, ou do melhor que ela poderia ser, uma espécie de arquétipo do bem coletivo projetado no individual para dar sentido ao coletivo. É o mesmo pré-julgamento que a sociedade faz das minorias, do negro, do pobre, do gay, do refugiado, do deficiente…só que ao contrário, uma espécie de discriminação às avessas. A justiça da sociedade pós-moderna não é cega, pelo contrário, enxerga demais, vê o que não existe, traz consigo um pré-conceito de um cidadão perfeito e nele a beleza estética além de moldada na argila dos dez por cento mais privilegiados da população com todos os seus traços étnicos e culturais ainda é um sujeito politicamente correto.

E quem é realmente a bela Flávia Tamayo nessas alturas do campeonato? Bom se quiser conhece-la de verdade não é nas páginas coloridas de papel brilhante e caro assinadas por J.R. Duran, mas em sites especializados em pornografia com a sugestiva alcunha de Pâmela Pantera.


Por Cristian Menezes - 9/2020

terça-feira, setembro 8

Somos Processos


O universo é processo. O mundo é processo. Somos processos. Estar em processo, ser processo significa não acabado, por acabar. E talvez nunca acabe. Estar em processo é tudo que se pode ser. O universo é, segundo cientistas, um processo em expansão. O mundo é um processo de reorganização constante. E nós? que tipo de processo somos? Para variar, somos bem mais complexos, ou não. O fato é que cada um de nós tem o seu próprio processo ou processos. De expansão, de retração; de reorganização, de desorganização; de mudança, de constância; de cura, de doença; de liberdade, de escravidão; de sair do poço, de afundar no poço…e isso não tem fim. 

Perguntaram certa vez ao filósofo, escritor, orador considerado ser de luz para os indianos, Jidu Krishnamurti quantas religiões existiam no mundo e ele respondeu: existem tantas religiões quanto existem pessoas. Ou seja, cada um tem sua própria religião. Mesmo em uma igreja, um templo, uma tenda…as pessoas que ali estão compartilham, compactuam de partes daquela religião, mas não de tudo e assim cada um tem, na verdade, sua própria religião, suas próprias crenças que diferem das outras. E a religião também faz parte dos processos humanos, pequena parte para uns, grande parte para outros, mas apenas uma parte do todo.

Tenho conhecido muita gente diferente nos últimos meses. Vejo-me dividindo, compactuando de parte do processo deles, mas não é totalmente meu processo. Tenho meu próprio processo. E isso é de extrema importância. Ter consciência do seu próprio processo para não “embarcar” no processo alheio pensando ser o seu. Nunca será. Vejo isso como se fosse uma procissão de navegantes. Pequenas, medias e grandes embarcações saindo de um único porto em uma mesma direção. Aos poucos algumas embarcações se juntam a outras por afinidades, seja por amizade, parentesco com os outros navegantes ou mesmo apenas pela cor do barco, pelos enfeites que utilizaram para orna-los…não importa. Ficam próximos por um tempo, uma parte do percurso, mas aos poucos, ou às vezes abruptamente, se afastam uns dos outros. Alguns observam esse afastar, esse dispersar, outros sequer tomam conhecimento, quando veem já estão sós no meio ou à margem do rio.

Quando se tem consciência de seu próprio processo, consegue escolher o momento certo para dispersar e ficar observando cada um seguir seu próprio caminho, sua procissão, seu processo. Quando não, é tomado sem querer pela angustia de estar só. E não se espante com a palavra, porque se cada um tem seu próprio processo, é claro que estamos sós nesse rio chamado existência.

Observei que às vezes você se apega, se aproxima de alguém, de um dos barcos e o desejo é de ficar perto, seguir juntos por mais tempo. Mas nem sempre é possível. Vai depender de o quanto os processos estão em intersecção, isso mesmo, aquele termo da Matemática, mais especificamente em Teoria dos Conjuntos, que quer dizer um conjunto de elementos que, simultaneamente, pertence a dois ou mais conjuntos. Quando a intersecção acaba, e isso pode ser em horas, dias, semanas, meses, anos, décadas…acabou a possibilidade de proximidade e cada um precisa seguir seu caminho, seu processo.

Outa coisa que vi nisso tudo é que tem gente que tem mania de achar seu processo melhor que o dos outros ou que o seu (processo) está em um nível acima. Quando se dispersa e passa a observar os outros barcos se distanciando costuma ficar tentando adivinhar aonde a rota que o outro barco tomou vai leva-lo e julga estar aquele barco tomando o caminho certo ou o errado, mais sinuoso, mais perigoso, menos indicado…ledo engano. Não existe rota certa ou errada, processo certo ou errado, só rota, só processo. E nada mais. Aqui cabe um trecho da música do mestre Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é…”. Quando a reciprocidade, os gostos em comum, o prazer do estar junto acontece, quando "rola a química", a vontade que dá é de tornar a se aproximar daquele barco e gritar: “Ei, essa rota aí é fria. Volta, vai por ali, vira aqui, segue comigo que te ajudo a navegar, já passei por esse trecho do rio e sei o caminho das pedras!!!”. Sinceramente? É perda de tempo. É como se cada um de nós tivesse a própria bússola, o próprio GPS que só obedece, só reconhece seu próprio Norte. Faz parte do processo.

Raramente acontece. Já vi acontecer. Não comigo, não agora. Mas já observei um barquinho se aproximando do outro e como quem não quer nada, lenta e silenciosamente encosta. E tão sorrateiramente quanto se aproximou leva de pouquinho em pouquinho o outro barquinho para uma rota mais tranquila, mais segura. E os dois barquinhos conseguem seguir juntos rio abaixo, numa rota só deles, com o pôr do sol às costas…a essa aproximação suave os outros navegantes do “rio da vida” como eu chamam de AMOR.

Por Cristian Menezes - 9/2020


terça-feira, agosto 25

Quem quero ser...ou continuar sendo


Que o mundo está ferrado, não é nenhuma novidade. Que não sou a cura, também não. Mas quero contribuir para tentar melhorá-lo ficando o mais distante dele possível. Não quero me enquadrar, me adaptar, me moldar ao mundo como ele está. Quero tentar ser melhor do que ele força-nos a ser.

Quero ser sincero, mesmo que falsidade seja quase uma reverência, um cumprimento obrigatório, uma etiqueta.

Quero continuar a acreditar nas pessoas, mesmo que a incredulidade faça parte de toda roda de conversa, como o futebol e a política.

Quero ser fiel, mas não como um cão, que o é por causa da comida, porque foi ensinado a ser.

Quero ser verdadeiro, mas sem a presunção de achar que toda verdade pode ou deve ser dita.

Quero ser amigo e não só colega, “parça” de alguém ou um contato nas redes sociais.

Quero poder ser solicito sem sequer pensar em pedir algo em troca. Quero poder pedir algo quando necessário sem ter que virar refém de quem me ajudar.

Quero ser do bem, sem, contudo, abandonar de vez a maldade que habita em mim, preciso dela, sob controle, para sobreviver.

Quero falar bem da minha família, mesmo sabendo não ser a mais perfeita do mundo, mas, afinal, qual é?

Quero estar no fundo da sala em silêncio, no escuro, junto com outros, com um lança confetes na mão para, ao acender das luzes, explodir em alegria pela passagem de ano de uma pessoa especial. Quero, ao acender as luzes da minha sala, ser surpreendido por pessoas que me querem bem cantando desafinados o ‘parabéns pra você!’ e que realmente essa data seja querida.

Quero usar branco na festa de Ano Novo e preto em velórios...ou vice-versa.

Quero poder falar o que penso sobre qualquer coisa sem ofender ninguém.  Levantar bandeiras, empunhar faixas, içar velas…sem que isso seja visto como um chamamento à guerra, uma afronta à paz.

Quero poder ir sem deixar ninguém triste pela partida, voltar sem que ninguém fique ansioso por achar que mudei.

Quero poder ter o privilégio de ser mais do mesmo e a mesma coisa, sem o stress de ter que me reinventar a cada encontro, a cada festa, a cada olá, a cada olhar.

Quero poder usar minha camiseta da sorte, minha calça surrada, meu All Star sem cor definida, minha cueca furada…vestir-me para mim, para meu conforto.

Quero ser livre e poder compartilhar minha liberdade com alguém. Quero ser comprometido e que se comprometam comigo.

Quero ser honesto, devolver a carteira perdida e que isso seja considerada uma atitude cotidiana, não pauta de telejornais.

Quero poder ter o dom de perdoar quem não me quer bem, porque perdoar quem nos quer bem é fácil.

Quero poder dizer que me importo com o sofrimento alheio para mim mesmo, sozinho, antes de dormir.

Quero ficar triste sem cair em depressão, chorar sem parecer desesperado, gritar sem parecer louco.

Quero poder ter exatamente a idade que tenho, sem querer parecer mais jovem para conquistar alguém ou mais velho para dar conselhos a quem não pede.

Quero poder nadar pelado em um rio, andar nu em minha casa, tirar caquinha do nariz sem me preocupar se estou sendo filmado por uma câmera de segurança ou um drone.

Quero poder xingar quando sentir raiva, sem ser acusado de discriminação ou racismo.

Quero poder dar risada do tiozinho que se estatelou no chão porque estava andando olhando para o celular, sem me sentir politicamente incorreto.

Quero comer, beber, fumar, fumar, beber, comer…assim mesmo, desse jeitinho, sem limite ou ordem, e sem julgamento.

Quero jogar meu lixo todo misturado; quero tomar Coca-Cola com canudinho de plástico, daqueles branquinhos com listas vermelhas e uma sanfoninha na ponta para dobrar; quero comer carne vermelha, branca, rosada...sem me sentir culpado pelas gerações futuras.

Quero comer doce de abóbora em forma de coração, doce-de-leite na casquinha de sorvete e pão com feijão.

Quero ser preocupado com o mundo sim, mas sem ser piegas.

Quero poder bater no peito e dizer que sou “O Cara”, sem falsa modéstia, simplesmente porque me sinto assim, me sinto bom em alguma coisa, qualquer coisa.

Quero ser cremado, e não enterrado, odeio terra, não sou batata.

Quero receber amigas em minha casa sem segundas intenções, somente pelo prazer do drinque, da boa música e da conversa fiada. Quero cumprimentar meus melhores amigos com um beijo no rosto como faço com as amigas, sem que digam que sou gay, até porque, se fosse beijaria na boca.

Quero passar a mão na bunda da minha namorada em público e que isso não pareça vulgar. E por falar em vulgaridade, quero ser vulgar sem deixar de ser sofisticado e ser sofisticado sem deixar de ser vulgar.

Por fim, mas não menos importante, quero fazer amor e não só sexo. Quero ir pra cama com uma pessoa especial e ficar lá, na cama, até amanhecer o dia. Quero dormir de conchinha sim, por que não? Quero acordar e ser acordado com um beijo suave. Quero levar café na cama, mandar flores, escrever poesias, enviar corações pulsando pelo celular…e se isso for considerado brega demais para o mundo “moderno”, que se dane o mundo, é assim que quero viver a minha vida.


Por Cristian Menezes - 8/2020


quinta-feira, julho 16

Arrependimento: um presente de grego


Presente de grego é uma referência ao último dos dez anos da famosa Guerra de Troia narrada no poema Íliada, de Homero, em que o rei espartano Menelau destacou grande exército, com grandes guerreiros, entre eles o semideus Aquiles e Ulisses, o rei de Ítaca, das ilhas gregas até Troia no intuito de resgatar sua esposa Helena “raptada” por Páris, irmão de Heitor, filhos de Príamo. Sem conseguir penetrar os muros de Troia, um estratagema foi arquitetado por Ulisses: todo o exército de Menelau se retirou deixando apenas um enorme cavalo feito com a madeira das embarcações como presente dos gregos aos troianos por “vencerem” a guerra pela desistência do adversário. O “Cavalo de Troia”, como ficou eternizado, estava recheado com os melhores guerreiros gregos, que aguardaram os troianos adormecerem depois de se embriagarem no afã da “festa da vitória” para sair de dentro do cavalo, abrir os portões e aniquilar toda a cidade, fazendo das mulheres e crianças escravos.

Dito isto, o arrependimento pode ser comparado a um presente de grego, um “Cavalo de Troia” dado à nossa consciência. Presente porque nos é dado, mas como o ardiloso mimo de Menelau, mais para ferir, trazer prejuízo que para alegrar. É o tipo de sentimento que ninguém gostaria de ter, e não o teria não fosse empurrado goela abaixo. É a dor por algo que já aconteceu, que já foi feito, portanto, irremediável. O arrependimento rompe os portões intransponíveis de nosso inconsciente e adentra a cidadela de nossa consciência para nos dizer o quão errado fomos, o quão injustos, o quão sediciosamente imorais podemos ter sido em algum momento e que, graças ao Cavalo de Troia, ecoará em nós para o resto de nossas vidas, lancinando nossas mentes, nossos corações ad infinitum, como, já que falamos em mitologia grega, o próprio Prometeu, acorrentado ao monte Cáucaso, condenado por Zeus a ter o fígado dilacerado todos os dias por uma águia e todos os dias regenerado para novamente ser rasgado.

O tamanho da tortura que pode nos causar nosso “presente de grego” é direta e diametralmente proporcional a dor impingida pelos nossos atos. Sofremos tanto o quanto fizemos sofrer e, às vezes, sofremos em dobro, pela dor que causamos ao outro e pela dor do arrependimento. E ainda há quem suscite uma verborrágica didática no arrependimento: o arrependimento vem para nos ensinar a não repetir os mesmos erros no futuro. Balela. Erramos de novo e novamente e o tal do “Cavalo de Troia” só cresce, passa de um pequeno Pônei a um imponente Shire. Podemos até aprender com nossos erros, mas didaticamente falando, o arrependimento está para o crescimento espiritual assim como a palmatória está para a educação tradicional: aprender pode até aprender, mas que dói, dói, e dói pra caramba. Nestes termos sou a favor de uma didática mais contemporânea, reflexiva, de ponderações.

Outra comparação que cabe aqui entre o presente dos gregos aos troianos e os cavalos de Troia que nos presenteamos ao longo de nossa existência é o final infeliz declamado por Homero. Lá, na Grécia do século XII ou XIII a.C., a guerra foi o crepúsculo de dois grandes heróis, Heitor, morto por Aquiles em vingança pela morte do primo Pátroclo, e o próprio Aquiles, abatido por uma flechada certeira disparada por Páris em seu calcanhar, único ponto vulnerável do semideus, cujos feitos foram cantados por poetas por séculos seguidos. Aqui, na nossa própria história, um único herói perde a vida, nós mesmos. O arrependimento por algo terrível que fizemos mata o herói, no sentido grego da palavra, o ser honrado, honesto, de altos padrões morais e éticos, o melhor de nós que poderíamos ter sido não tivéssemos errado tão patentemente. E o herói dentro de nós morre como o herói grego Aquiles, atingido em nosso ponto vulnerável, o nosso ponto mais frágil…o coração.

Por Cristian Menezes - 7/2020

quarta-feira, julho 8

Como o mundo muda para melhor?

       Imagem: filósofo italiano Nicolau Maquiavel, do Portal Grande Ponto
Certamente essa é uma questão que assombra a humanidade desde que se reconheceu como humanidade. Certamente também não existe uma fórmula secreta para isso. Mas a Filosofia traz pistas. Uma delas bem poderia ser uma função da ética que se já dita, não é tão conhecida. Os livros trazem, resumidamente, a ética como “um conjunto de valores que servem para orientar o homem no convívio com os seus em sociedade”. Vendo por esse angulo, a ética é flexível, uma vez que os valores, segundo o filósofo e sociólogo francês Edgar Morin, são complexos, ou seja, “todo valor tem no seu contrário um valor também”. Exemplificando, se a honestidade é um valor, a desonestidade também, afinal, qual casamento se sustentaria sendo os cônjuges cem por cento honestos um com o outro o tempo todo? “Esse vestido (que rodei o shopping o dia inteiro para comprar e custou mais do que poderia ter pago) está bom meu amor?”, pergunta a esposa, sorridente. “Está simplesmente horrível, meu bem!”, responde o marido. Lá se foi a harmonia do casal pela falta de uma desonestidadezinha que não faria mal a ninguém.
Mas e se a ética tivesse uma outra função, que não apenas a de servir como uma bandeira branca entre os homens para que possam conviver? E se por ética compreendamos preceitos não tão flexíveis assim e que, exatamente por sua inflexibilidade, tivessem o poder de mudar o mundo para melhor? Que tal imaginar o século XVIII com madames desfilando em luxuosas carruagens cercadas de escravos para lhes servir? Imagine as festas suntuosas em grandes mansões em que os escravos eram enfileirados e postos à amostra como peças integrantes da decoração da casa? E os leilões de venda de escravos, que, via de regra, se tornavam eventos sociais de grande magnitude, atraindo, entre outros, membros de destaque da sociedade laica e clerical. Não teria sido a ética de alguns que se revoltaram com a condição de humanos-escravos que iniciou todo o movimento abolicionista no mundo inteiro a ponto de essa indignação ecoar pelos séculos e fazer com que cidadãos ingleses de Bristol “afogassem” no rio a estátua do famoso escravocrata Edward Colston, agora, mais de 200 anos depois?
A ética inflexível, a reflexão que toma por base valores de convivência e os mantém incólumes, pode resultar na indignação, semente das grandes revoluções, que por sua vez têm a capacidade de mudar o mundo, quase sempre para melhor, pelo menos em teoria. A escravidão, o tratamento vil para com pessoas iguais, diferentes apenas na cor da pele, feriu a ética de pessoas preocupadas com os direitos do humano em geral, não apenas com os nascidos no privilégio da cútis alva. Os valores que servem de base para essa ética inflexível? Uma delas sem dúvida é a compaixão. Segundo o Dicionário Aurélio, “Sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de minorá-la; participação espiritual na infelicidade alheia que suscita um impulso altruísta de ternura para com o sofredor”. O contrário da compaixão? Indiferença, um valor também, claro, em algumas circunstâncias bem particulares, por exemplo, uma pessoa que tenha que cuidar de um parente com esquizofrenia em estágio avançado que o achincalha todas as manhãs por confundi-lo com outra pessoa. Veja que nesse caso específico, a indiferença chega ser uma dádiva. Porém, caso a escolha dos então futuros abolicionistas tivesse sido, como o da maioria à época, a indiferença, hoje ainda teríamos senzalas espalhadas por toda parte e pelourinhos içados nas praças para castigar aqueles que ousassem falar em liberdade ou em igualdade de direitos.
A questão aqui, portanto, é: eu aprendo muito quando flexibilizo, minimizo minha ética para adaptá-la, ou adaptar-me, a certas circunstâncias, geralmente imediatas. Porém, eu posso ensinar as pessoas à minha volta, o mundo quiçá, a refletir quando a mantenho inflexível diante daquilo que me causa indignação, daquilo que prevejo ser o melhor para a humanidade, seja em curto, médio ou a longo prazo. Não seria, afinal, uma ética intransigente a produzir cidadãos honestos e responsáveis, políticos incorruptíveis, empresários comprometidos com a sociedade?
Não são poucas as coisas que podemos vislumbrar seria melhor caso deixassem de existir. Também não são poucas as coisas que estão em processo de mudança, graças, em grande parte, à ética imutável, incorruptível de alguns corajosos, que aceitam a árdua tarefa de se tornarem personae non gratae em seus círculos familiares, de amizades ou até para toda a cidade ou país. Exemplos? As pessoas que lutam em prol do meio ambiente; pessoas que dedicam a vida para salvar animais em risco de extinção; pessoas que correm o mundo para lutar pelos direitos das mulheres a, apenas, aprender a ler ou sentir prazer. E todas essas mudanças em andamento estão sendo conduzidas por pessoas cuja ética não flexibilizou para o seu oposto, não se calou, não se escondeu.
Existe uma linha tênue em flexibilizar a própria ética e tornar-se hipócrita. Afinal, poderíamos dizer que existe mesmo uma ética, uma reflexão de valores em quem não se incomoda com nada, em quem em todo lugar se sente bem, em toda situação se vê confortável, naquele que serve uma ética a la carte ao bel prazer do “cliente”? Não é, pois, a manutenção de nossos princípios (éticos) que acabam por nos definir como pessoas?  
Mesmo no mérito do pensamento de Morin - que dizia que o homem deveria acrescentar um demens à sua autodesignação, ficando homo sapiens sapiens demens -, ou seja, racional, mas também um pouco descomedido, louco -, não podemos perder a noção de que nossas atitudes, nossas ações, nossas escolhas é que fundamentam o nosso devir. É, portanto, de nossa total e inteira responsabilidade o que nos tornamos e tornamos o mundo. E se o preço por isso for um pouco de incompreensão, isolamento…aquele olhar atravessado ao passar na rua ou mesmo aquele convite para uma festa que todo mundo recebeu, mas não chegou para você…paciência, acho que vale a pena pagar.

Por Cristian Menezes - 7/2020

quarta-feira, junho 17

Ensaio: O melhor do pior que poderia ser

                                                                       A arte de Pawel Kuczynski
Andei refletindo muito sobre duas frases, uma a vejo estampada em uma porta quase em frente à minha sala de trabalho todos os dias e outra já tinha ouvido várias vezes, mas nunca tinha me chamado muito a atenção, creio que o problema semântico, que EU vejo nelas, talvez me tenha despertado interesse. A primeira, “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”, dita por Cora Coralina e repercutida enfaticamente entre pedagogos e profissionais da Educação. A outra é secular, é um trecho da oração de São Francisco, “…É dando que se recebe…”, claramente inspirada na passagem bíblica “Dai, e vos será dado…” (Lucas 6. 38). Sobre a primeira frase, vejo uma discrepância (crono)lógica na segunda parte, “…e aprende o que ensina”. Como assim? Não seria a “confissão” explícita de que “ensinei” sem saber o que estava ensinando? Penso que só se pode “aprender” do Latim ad, “junto” mais prehendere, com o sentido de “levar para junto de si”, metaforicamente “levar para junto da memória” aquilo que não se sabe, tendo como única variação possível, porém pouco provável, o verbo reaprender, voltar a aprender aquilo que se havia aprendido e esqueceu, mas quando se aprende alguma coisa e se esquece, uma dúvida logo surge: será que aprendeu mesmo, afinal? Não reza a lenda que aquilo que realmente se aprende jamais se esquece? Penso que seria complicado um mundo onde as pessoas tivessem que reaprender a andar, falar, nadar…andar de bicicleta frequentemente. Dramatizando isso em um procedimento médico, por exemplo, não significaria dizer que um cirurgião vascular “aprende” sobre as veias coronárias somente estando debruçado sobre o tórax aberto de um paciente cardíaco? “Qual é mesmo a cava superior?”, indaga o cirurgião ao assistente de cirurgia. Improvável não? Mas um educador pode chegar na Sala dos Professores no intervalo das aulas e, em espanto, exclamar aos quatro cantos: “Geeeennnttteeee, não é que a terra é redonda mesmo!!! Jurava que era plana”, isso depois, e somente depois, de acessar uma webcam ao vivo de um satélite da NASA em órbita terrestre com os alunos em uma aula de Ciências. Depois não sabemos o porquê (ou seria ‘porque’, tenho que aprender…) da diferença salarial tão gritante entre as duas classes de profissionais.
Já sobre a segunda frase, a questão é um pouco mais complexa, filosófica até algo do tipo “…o ovo ou a galinha?”. Posso dar aquilo que não tenho? E por que não tenho? Não tenho porque não me foi dado? Posso ter sem ter recebido? Creio que se o trecho da oração de Francisco de Assis se referisse apenas, e tão somente, ao plano terreno, físico seria fácil explicar e coerente a sentença. Mas é sobre sentimentos, amor, compreensão, perdão…a que ele se refere, é ao plano espiritual, metafísico. Tanto é verdade que a própria inspiração de Francisco, Jesus Cristo, veio, segundo as Escrituras, para dar o exemplo, amar os que o odiaram, perdoar os que o condenaram. Só na teoria, na palavra não teria sentido. Como posso amar, sem nunca ter recebido tal complexo sentimento? Posso realmente perdoar sem conhecer a dádiva do perdão? Compreender sem ter a dimensão real do compreensivo? Geralmente podemos aprender pelo exemplo ou pelo bizarro, quer dizer, posso aprender a amar pelo amor ou pelo contrário dele, pelo ódio. Aprender a compreender a partir da incompreensão. Aprender a perdoar depois de ter sido eu mesmo condenado. A isso chamamos pomposamente de sublimação, mas vamos e venhamos, é muito arriscado. O ideal é quando aprendemos a amar por termos sido amados, compreender por em algum momento termos sido profundamente compreendidos, perdoar por termos sido perdoados. Só que assim, a sentença franciscana fica comprometida, invertida, “é recebendo que se dá”, ou melhor, “damos aquilo que recebemos”. Se recebi muito, posso dar muito. Se recebi pouco, pouco dou. Se nada recebi, nada dou. Essa, ao meu ver, é a realidade, a triste realidade, longe de ideologias religiosas, mas próximo, muito próximo do que vivenciamos. Há exceções, mas são exceções. Aqueles que pouco receberam, mas muito dão, e os que nada receberam, mas conseguem dar algo…aprenderam com o bizarro, o esdrúxulo, o contrário…aprenderam com a vida, são sobreviventes, guerreiros, são os melhores do pior que poderiam, que estavam fadados a ser… “Vós pouco dais quando dais de vossas posses. É quando dais de vós próprios que realmente dais”, escreveu o poeta libanês Gibran Khalil Gibran. Dádiva, portanto, fala quase sempre sobre pessoas e não coisas e aprender pelo que lhe foi negado exige muita, muita presença de espírito, dedicação e autoconhecimento. Difícil? Certamente, mas não impossível.
                                                          
                                                                           Por Cristian Menezes – Junho/2020

quarta-feira, maio 13

Educação sem o paradoxo werneckiano

                  Imagem retirada do site: linguagemgeografica.blogspot.com

A priori, o título deste artigo seria “Educação sem Fingimento em Tempos de Pandemia”. Porém, para os mais desavisados poderia soar como uma panfletagem ao que tem sido denominado por muitos como “educação online” ou “educação digital”. Longe de nossa intenção.
Na década de 1990 um até então desconhecido professor, Hamilton Werneck, escreveu um livro cujo título chamou mais a atenção do que propriamente seu conteúdo: Se você finge que ensina, eu finjo que aprendo. O título do livro é o que chamamos aqui de paradoxo Werneckiano. Ressalvas à parte, e são muitas, a tal prática educacional alarmada por Werneck, que tirou o sono de muitos educadores, teria, teoricamente, perdurado até os primeiros meses deste ano, exatamente quando teve início o isolamento social proposto pelas autoridades de Estado, que suspendeu as aulas em todo o País, inclusive na iniciativa privada. Pois bem, os sucessivos decretos saíram dos fornos federais, estaduais e municipais, estritamente nessa ordem, em intervalos de 15 dias na aposta de que, como tem dito o Presidente brasileiro, a “gripezinha” passaria logo e tudo voltaria ao normal. Não passou e não voltou e ainda não se tem data certa para acontecer e mesmo que venha a acontecer nada garante que permaneça.
Na educação, depois dos primeiros decretos e temendo-se pôr em risco o Ano Letivo 2020 pela falta de tempo hábil para cumprir com o preconizado pelo Ministério da Educação de 200 dias ou 800 horas letivos, pipocaram iniciativas, primeiro isoladas, depois coletivas de se “fazer alguma coisa para salvar o ano (Letivo)”. E aí que o que já era ruim piorou de vez. Professores, supervisores, diretores despreparados, muitos analfabetos digitais mesmo, passaram a arriscar navegar por águas nunca dantes navegadas. Atividades começaram a ser disparadas aleatoriamente via Whatsapp e plataformas de multinacionais, criadas mais para lucrar e menos para educar. Do outro lado do visor, crianças e jovens vendo pela primeira vez na vida que o “Zap”, como eles apelidaram, poderia servir para algo mais que mandar e receber emojis, replicar fake news e, claaaarrrroooo, paquerar e marcar “sociais” de “teris” e/ou “nargue”. O que ninguém fala, em prol de “salvar o ano”, é que além de perdidos tem muita gente ficando de fora.
Quando buscamos as estatísticas das prestadoras de serviço de internet, elas contabilizam quase 80% do Brasil como estando online. Para eles, o simples fato de a pessoa ter um celular pré-pago com crédito em pacote para usar o Zap e algumas redes sociais já é o suficiente para contar como online. Para se fazer educação isso não basta. De nada adianta professores enviarem links com atividades pelo Zap, se do outro lado, o aluno não conseguir fazer o download da atividade que foi enviada com extensão .Doc ou .PDF, por exemplo. Muitos, ou a maioria, não sabe sequer “que bicho é esse” e para os poucos que sabem, não fazem ideia de que precisa fazer o download de um APP para poder abrir os arquivos. O mesmo para os links de vídeos disponibilizados em plataformas pseudoeducacionais. Ora, a “internet” da maioria dos alunos só serve para o Zap mesmo. Se tentar “abrir” um videozinho qualquer de 2, 3 minutos lá se foi a internet do mês todo criando outro dilema para o jovem: “abrir” um vídeo para estudar e perder o Zap pro resto do mês ou simplesmente ignorar a vídeo-aula e partir para o “minha mãe mandou bater” nas respostas das atividades, mas manter o crush ligadinho e a pontuação/fase no Free Fire? Alguém tem dúvida de qual será a escolha deles?
E isso estamos falando apenas dos alunos que têm celular e têm essa “internetizinha de Zap”. E aqueles que sequer têm celular e precisam dividir com os pais para ver as atividades quando eles chegam do trabalho? E aqueles que precisam sair pelas ruas com o celular apontando para o alto ou prostrarem-se como postes ao lado de algum comércio para “roubar” internet? E aqueles que precisam dividir um cubículo com um amontoado de gente, como é que consegue concentração para estudar? E por falar em concentração, como é que se concentra em alguma atividade no celular tendo que teclar de minuto a minuto com os colegas de Zap e atualizar a timeline do Face ao mesmo tempo?
Ficou claro para você leitor, a derrocada do paradoxo werneckiano? O alargamento/aprofundamento do famigerado abismo social na educação brasileira ou pelo menos sua exposição nua e crua? Para os 10% mais abastados da população é só sentar no quarto em frente ao PC ou laptop, fechar a porta, fazer as atividades em uma internet a cabo de fibra óptica e imprimir na impressora a laser e pronto, “tá de boa!”. Mas e o resto da população que até mal alimentada está pela falta da merenda? Nessa situação, se não tem como o professor, atado ao sistema que além de desarmá-lo das ferramentas básicas para a disciplina em sala de aula e praticamente obrigá-lo a promover o aluno faça ele alguma coisa ou não, fingir que ensina, também não tem como o aluno, vítima do mesmo sistema, fingir que aprende. Fim do dilema.


Por Cristian Menezes - 04/20

quinta-feira, abril 30

Relação/relacionamento: para além da etimologia

                                                                                 Foto: site leiaja.com

Quando pesquisamos as palavras relação e relacionamento os dicionários são unânimes em afirmar que são sinônimos, ambas pertencem à classe gramatical de substantivos, com a diferença que relação é uma palavra feminina e relacionamento é masculina, ponto.
Porém, como em sociedade nem tudo, ou quase nada, é tão relativo assim e parte da construção linguística, da significação dos símbolos são dadas não só pela práxis, mas também pelo retorno emocional (feeling) desses símbolos, pode-se, e deve-se, debater conceitos metalinguísticos sobre essas, e quaisquer outras, palavras que, notadamente, embora sinônimos, temos preferência em empregá-las em determinadas circunstâncias às outras.
Para além do léxico, relação e relacionamento, portanto, teriam uma diferença de grau de proximidade, de envolvimento, de troca. Outra diferença, relacionada ao grau de proximidade, que poderia ser marcada é a questão do livre arbítrio, ou seja, quem está em uma relação pode estar por livre e espontânea vontade ou não, pode ter, simplesmente, ido parar dentro, junto…por mero acaso. Já quem está em um relacionamento está por escolha própria, está dentro, junto…porque assim o quis, mesmo que, amiúde, não tenha total consciência dessa escolha (mas isso fica para Freud explicar).
Que as duas palavras estão intrinsecamente ligadas, isso não se pode negar. Tanto, que uma pode se transformar, transmutar na outra. Podem estar, desafiando leis básicas da física, ocupando o mesmo lugar ao mesmo tempo, ou seja, as pessoas podem estar em uma relação e um relacionamento ao mesmo tempo, sabendo disso ou não. Outra possibilidade um pouco mais polêmica é que entre duas pessoas, uma pode jurar de pés juntos estar em um relacionamento enquanto o outro pode pensar estar apenas em uma relação. Isso mesmo, você leu a palavras “apenas” precedendo a palavra “relação”, pois como já foi dito antes, existe uma diferença, uma sútil (às vezes nem tanto) diferença entre relação e relacionamento quando referimo-nos à proximidade, digamos, de almas, não necessariamente de corpos. E nessa hierarquização linguística relação é inferior a relacionamento, ainda que preferível e até necessária em muitas ocasiões.
Como exemplo, podemos falar sobre a condição humana em local de trabalho. Pessoas, circunstancialmente, acabam virando colegas de trabalho por determinado período de tempo. Se tivéssemos, e pudéssemos, que escolher uma das duas palavras para designar essa convivência em trabalho, a maioria escolheria a palavra “relação”, talvez pela capacidade que ela tem de marcar um grau de envolvimento (de almas) mínimo, básico, requerido, pré-estabelecido, um distanciamento do emocional. Já quando o assunto é uma convivência amorosa, conjugal é quase que unânime a preferência pela palavra “relacionamento”. Parece até que por si só já tem o peso da intimidade. Na etimologia, “relacionamento” vem da raiz em latim relatus, forma do verbo refero, que quer dizer trazer de volta. Em livre associação, dar e receber, troca.
Em uma relação, digamos fordiana, essa troca é limitada, quase nula quando o que se exige é apenas “sua parte bem feita”. Em um relacionamento, só fazer sua parte quase sempre é insuficiente, enquanto o contrário, sim, é um pré-requisito sine qua non para seu sucesso. Relacionamento requer que cada um faça sua parte e a parte do outro um pouquinho, pense em si e no outro, queira por si e pelo outro, aprenda e ensine…é troca constante. E, claro, o relacionamento deixa de funcionar quando um vive uma relação e o outro está atolado até o pescoço em um relacionamento, a balança da responsabilidade pende mais para um dos lados, desequilíbrio insustentável. Uma relação pode se transmutar em relacionamento quando esta extrapola os muros por ela mesma construída, seja por pactuação, moralidade ou necessidade corporativa. Um relacionamento (amoroso) pode voltar a ser uma relação (de amizade, de trabalho), desde que na reconstrução dos muros não se tenha perdido a confiança e principalmente o respeito mútuo.

Por Cristian Menezes – Abril/2020

quinta-feira, abril 9

Ensaio: sobre erros e acertos (ou EU errante)



Erro, erro muito. Errei a vida inteira e continuo errando. Erros grandes, erros médios, pequenos errinhos. Mas erro. E assumo meus erros, não me envergonho de errar. Ainda não estou pronto, não nasci pronto, e talvez nunca fique totalmente pronto para não errar mais. Aliás, a simples presunção de que se pode não errar mais já é, em si, um erro.
Erro e assumo as consequências dos meus erros. Não vou me esconder na carapaça dos fracos, dos covardes, que se defendem com a célebre frase: “erro, mas quem não erra?!?”. Os erros dos outros não anulam os meus erros, e vice-versa. Cabe aqui uma frase maravilhosa de Sartre: “Não importa o que fazem conosco. O que importa é o que fazemos com o que fazem conosco”.
Sei, até, que boa parte dos meus erros são provocados por erros alheios, mas aprendi também que sempre há o livre arbítrio, a escolha, e posso, mesmo que exija um esforço mental descomunal, interromper a lei de causa e efeito, “erraram comigo, vou errar com outro”. O pensamento é abstrato, não é regido por leis físicas, mas por leis de convívio, de caráter, de pensar o outro constantemente. Um dia consigo fazer isso em todas as situações.
Mas uma coisa importante pude observar nessa minha vida de ser errante. Erro tanto mais quanto maior é o meu amor, o meu desejo, o meu apego. Quanto mais amo alguém, mais erro com esse alguém, porque tenho pressa de acertar de vez. Quanto mais desejo alguém ou algo, mais erro tentando satisfazer-me, tenho pressa em receber e dar prazer. Quanto mais quero alguma coisa, mais erro tentando obtê-la, tenho pressa em escondê-la, para que ninguém mais a possua.
Já amei pouco, ou não cheguei a amar, e errei pouco, e de tão pouco amor e poucos erros essa pessoa saiu do meu coração sem sequer deixar vestígio, como se nem ali tivesse estado. Já desejei pouco, e errei pouco na sua busca, e sequer cheguei a sentir o dissabor de um desejo não realizado. Já quis pouco alguma coisa, errei pouco, e nem cheguei obter o objeto do meu apego.
A partir disso, desse entendimento sobre o erro e suas razões, me vi num dilema: o ideal de amar, desejar e querer é o equilíbrio entre o amar muito e amar pouco, desejar muito e desejar pouco, querer muito e querer pouco. Mas, contudo, pensar esse equilíbrio, buscar esse equilíbrio constantemente não é, em si, também um erro? Como posso amar alguém comedidamente para não errar, se amar é o próprio transbordamento das emoções, o auge, o ápice, o desespero de sentir? Como posso desejar algo ou alguém que também é objeto de desejo de outros medindo o meu desejo para não desejar demais ou de menos, se o desejo é a desmedida do querer, é querer intensamente, libidinosamente? Como saciar o apego a algo, pensando o querer muito e o querer pouco, se apego é justamente o exagero do querer ter, o egoísmo do possuir?
Diante disso, pelo menos para mim, só resta uma opção: vou amar uma pessoa com toda a minha alma, com toda a intensidade que puder amar, mas ciente que vou errar com essa pessoa de vez em quando, e vou torcer para que o meu amor seja correspondido em igual intensidade a ponto de nossos erros não serem vistos como erros, e assim, ignorando-os, enfraquecê-los até que desapareçam de nossas vidas. Vou desejar com ardor, com veemência, com todo afã que puder, mas sabedor de que vou errar muito e por vezes não realizar meus desejos, trancá-los-ei no armário de desejos irrealizados, irrealizáveis. Vou querer coisas com avidez, com perseverança, sem qualquer altruísmo, mas com a certeza de que vou errar muito e por vezes não vou chegar a conquistar meus objetivos, ou, se conquistados, perdê-los-ei por causa dos meus erros.
Mais vale lutar e perder do que nunca ter lutado, disse um sábio, provavelmente tão errante quanto eu. Lutei muitas lutas, perdi muitas delas, ganhei algumas, mas não vou mudar minha essência de lutador aprendiz, sempre em constante aprendizagem/erro/aprendizagem. Posso me reciclar a qualquer momento, me transformar, me reinventar desde que haja razão pra isso, desde que valha a pena. Porém, o motor dessa mudança, a fonte de onde tiro forças para transformar-me é a intensidade com que vivo minha vida, meu amor, meu desejo, meu querer.

Por Cristian Menezes - 2016?

Ensaio: Sobre homens e máquinas

Cenas reais postado na internet, à época, de mulher linchada no Guarujá

“Mulher é morta a pauladas em praça pública pela população acusada de bruxaria e rapto de crianças para rituais de magia negra”. Não, não é um trecho de nenhuma Acta Diurnália do século II a.C. narrando, em tabuas afixadas nos muros de Roma, os principais acontecimentos do Império Romano. Não. Essa triste notícia é de agora, pleno século XXI, numa das maiores cidades do mundo moderno, São Paulo/Brasil. E ao invés de apenas fazer parte de um rol de parágrafos em escritas cuneiformes em um pedaço de madeira, foi causada, partiu do que se tem de mais moderno em termos de tecnologia e comunicação: o computador e as famigeradas, e totalmente livres, redes sociais.
Pensei em iniciar este artigo com metáforas que lembrassem a passagem dos irmãos Caim e Abel, “o primeiro homicídio” de que se tem notícia na história escrita da humanidade. Mas depois de refletir um pouco percebi que não caberia, visto que o ato motor do assassinato bíblico teria sido a cólera causada pela inveja. Argumento frágil para se tirar a vida de uma pessoa, ainda mais quando a pessoa em questão é o próprio irmão. Torpe e fútil teriam sido as motivações para o linchamento da mãe de duas filhas no litoral paulista, deveras mais frágil que a motivação de Caim.
“Só mais um”, diriam alguns desavisados. Ledo engano. Primeiro que o que muitos chamam de linchamento, na verdade, não passa de tentativa. O linchamento deve, invariavelmente, culminar com a morte da vítima. Tentativas até houve, mas linchamento mesmo é o primeiro, pelo menos aqui, pelo menos tão cruelmente e cruamente documentado em vídeo.
E não. Não é um crime como qualquer outro. Não é um incêndio de ônibus praticado por vândalos de plantão, não é troca de tiros entre bandidos e a polícia numa favela. O linchamento parte da população. É o vizinho, a dona de casa, o estudante...que sob o véu da impunidade, do anonimato e da revolta ignorante cometem absurdos. Não, não é “só mais um crime”.
Questões semânticas à parte e longe de querer amenizar a barbárie que é um punhado de “cidadãos” sair de suas casas, suas rotinas, suas vidas para “lavar a honra” da sociedade com as próprias mãos – quem eles pensam que são? - o preocupante aqui, e aí, e só aí, cabe uma pequena comparação com o primus hominis excidium, do Gênesis, é a profunda e atordoante indiferença pela vida, é a temerosa proximidade com o que há de mais incognoscível e lascivo na condição humana que envolve os dois atos. Com um agravante, Caim estava no início do que hoje chamamos de sociedade. Já o que vivemos é o futuro de todos os tempos passados, é o amanhã tão sonhado por Asimov (o Isaac - IA Inteligência Artificial) e perturbadoramente vislumbrado em pesadelos psicodélicos por Huxley (o Aldous – Admirável Mundo Novo) e por Burgess (o Anthony – Laranja Mecânica).
O futuro chegou e todas as máquinas, todo o colorido das LEDs, a inteligência dos nerds, a presteza dos softwares a rapidez das nets só tem servido, ou pacificamente assistido, via webcam, à desumanização do homem. De que adianta tanta tecnologia, ciência, saberes se o mais importante e mais simples e objetivo de tudo isso, que é o convívio pacifico do homem com os seus em sociedade, não está sendo alcançado, aliás, está se perdendo o pouco que se tinha alcançado?
Somos seres híbridos agora, parte homem parte máquina, e a parte máquina, sem sentimento, sem pudor, sem ética, sem compaixão está suplantando a parte homo.
Sobre essas “melhorias” advindas com o mundo high-tech, encerro este artigo parafraseando um dos personagens dos contos de K. Dick (o Philip), escritos no final do século passado, "Com tantas máquinas, computadores e pílulas para sentir, vejo que a humanidade se tornou um ato de se afastar de tudo que é humano".

Por Cristian Menezes - 2014

Nem os professores, nem a escola muito menos o aluno: o sistema



Quando se pensa em apontar culpados pelo caos que aflige a educação brasileira sempre se ouve frases prontas do tipo: “a culpa não é dos professores, que ganham mal, dão o sangue em salas superlotadas...” ou “a culpa não é dos alunos, que sequer sabem para que serve ir às aulas todos dos dias...” ou ainda “a culpa de tudo isso é do sistema, que ganha com a ignorância, afinal, povo burro é povo fácil de enganar...”. “Mas afinal quem é esse tal de Sistema para mim poder ir lá e falar umas verdades para ele?!”, diria o mais desavisado.
Pois é, também defendo, veementemente, que o problema da educação no Brasil não está no professor, não está no aluno, não está na instituição escola, mas sim no sistema, e, para satisfazer a curiosidade de quem procura o tal “Sistema”, descortiná-lo-ei.
Grosso modo, o sistema é tudo que sustenta e é sustentado pelo tipo de política econômica vigente, o tipo de regime impregnado no nosso dia-a-dia, na nossa cultura e até no nosso jeito de ser. O sistema não é quem, mas o quê, como, quando e onde. Está em tudo, mas não pode ser visto a olho nu.
A melhor forma de identificar “quem” no sistema, é acompanhar o que se desencadeia a partir e com ele e chegar àquele que ganha, que lucra, que se locupleta com o sistema. Se existe uma pessoa física (ou jurídica) culpada pelo sistema é esse o CPF (ou o CNPJ) dele.
Já pensou, por exemplo, o que seria do proprietário de uma rede de postos de combustíveis multimilionário se os adolescentes que trabalham de frentistas - os “linha de frente” contra os assaltantes e que ainda têm os produtos dos roubos aparecendo em seus holerites como adiantamentos -, se estes aprendessem tudo que é transmitido pelo professores em sala de aula, se fossem além e ainda pesquisassem por conta própria sobre outros assuntos, se lessem livros, se chegassem a uma universidade de boa qualidade, se fizessem uma pós-graduação, um mestrado, um doutorado...e se esses jovens perceberem que eles não precisam, necessariamente, ser frentistas, mas que podem chegar a ser o gerente do posto, o dono do posto, o dono da rede de postos, o proprietário da refinaria de petróleo...será que eles ainda assim iriam se prontificar a ficar segurando uma bomba de combustível, passando rodo no chão e jogando água no para-brisa de carro? Não. E sabe o que aconteceria se todos agissem da mesma forma, se erguessem a cabeça e começassem a não aceitar serem menosprezados, subvalorizados, idiotizados? O sistema quebraria.
Seguindo o caminho inverso, se o jovem se resigna com sua “condição”, pior, se chega a se sentir feliz em ser frentista, em estar empregado “no País do desemprego”, porque “todo trabalho é digno”, é aquele que não chega no horário na escola porque “larga” o serviço tarde, não presta atenção na aula porque está muito cansado, não participa das atividades, não faz tarefa, não lê...enfim, o aluno “dá nada”, este desmotiva o professor, desestrutura a escola, força uma falsa política educacional que coleciona números para sustentar o status quo no cenário econômico mundial, mas vira chacota para gringo na Copa do Mundo empunhando cartazes do tipo “Vamu pro équiça”.
Com aluno e professor desmotivados, a gestão da escola entra em crise. A escola vira um gueto, onde marginais se misturam às pessoas de bem, há comércio de drogas, prostituição e vandalismo da coisa pública. Uma escola-gueto hoje, duas amanhã...e a sociedade, em um médio espaço de tempo, está toda comprometida. Alunos de baixo rendimento tendem a ser profissionais medíocres, adultos irresponsáveis, pais de filhos de baixo rendimento...é um ciclo vicioso que fortalece o sistema.
Por que fortalece o sistema? Porque sociedade problemática gera esperança, palavrinha, aliás, odiosa, que significa um monte de gente esperando que alguém faça algo por ela que não pode, ou não quer fazer por si. Surgem os políticos com a “cura”. E quem sustenta o político e suas campanhas milionárias? Os donos dos postos de combustíveis, ou seja, o sistema.
O resultado desse esquema doentio não é só a violência, a pobreza, a fome, a doença...tem coisa pior. O mais cruel no sistema é que ele tira do homem, do jovem, da criança a capacidade de sonhar.
Os adultos de hoje não têm grandes sonhos, não pensam em descobrir novos mundos, salvar o planeta, construir uma máquina do tempo para voltar ao passado e fazer melhor...nossos heróis não voam, não têm superpoderes, não vestem capa vermelha por debaixo do terno, aliás, sequer usam ternos...são trabalhadores, empregados, frentistas...o sonho não passa do portão da cerca branca, com uma casinha azul no meio e cravos ao redor para o totó “regá-las”. Se a noção de sucesso é pífia, o sinônimo de felicidade para quem sonha pequeno só pode ser ínfimo: contar os dias da semana à espera do sábado para tomar umas “brejas” com os amigos, “queimar uma carninha” e mentir um pouco “pra aliviar o stress”.
Os filhos, por natureza, não sonham muito mais alto que os pais, já que o sonho possível de todo jovem é ser o que os pais são ou ser melhores do que os pais foram. Só que melhor do que um pouco é só pouco mais que pouco.
“No porão de todo empresário, funcionário público de carreira...cujo filho sonha ser roqueiro e viajar o mundo com uma banda, tem sempre uma guitarra empoeirada”, disse um psicólogo. E agora pergunto: e nós, o que temos no nosso porão da vida para inspirar nossos filhos?
Ah! Só uma ressalva. Nada contra frentistas, apenas lembrar que nos países ditos civilizados é uma profissão extinta há muito tempo. Nos países subdesenvolvidos resiste como um símbolo de poder, subserviência e autopreservação, afinal, quem arrisca abastecer o Corolla em um posto de combustível na Zona Leste do Rio de Janeiro depois das 10? O dono do posto é que não é.

Por Cristian Menezes - 2017

Quem disse que aprender é fácil?



Nossos comandantes, mandatários, entendidos em educação pregam, ultimamente, que a aprendizagem deve ser prazerosa, tanto para o aluno quanto para o professor. Disse certa feita ter enorme prazer em ensinar, aliás, não fosse essa satisfação com o metier já o teria abandonado, afinal, não há, no Brasil, outro retorno a quem se dedica à docência. Responderam-me que é importante, mas que o aluno também tem que sentir prazer em aprender, como se a satisfação em saber que o aluno se sente bem aprendendo não fizesse parte da minha satisfação em ensinar. Até aí tudo bem, mas pensemos um pouco mais no paradoxo Aprendizagem X Prazer.
Existe mesmo algo que nos traga real prazer totalmente isento de sacrifícios, de sofrimentos ou mesmo de certo desconforto, entendendo, é claro, as palavras sacrifício, sofrimento e desconforto como unicamente o contrário ao prazer?
Vejamos. Algo aparentemente simples como é a constituição de uma família é possível sem alguns sacrifícios? Creio que não. Manter uma relação por muito tempo é deveras difícil, até mesmo impossível para alguns. Mas todos os “sacrifícios” são recompensados pelo resultado, pela boa criação dos filhos, o carinho dos netos, o conforto de uma vida estruturada.
Onze em cada dez mulheres gostariam de chegar aos 40 com corpinho de 20 esbanjando saúde, beleza e vigor. Mas existe uma fórmula mágica para se chegar a essa satisfação sem sacrifícios? Certamente não. Não é nada fácil dedicar uma boa parte do tempo em academias, privar-se do convívio social, familiar para dedicar horas a longas caminhadas solitárias, privar-se de excessos, de certos prazeres para não ultrapassar os limites impostos pela balança e pela lei da gravidade.
Mesmo algo simples como aprender outros idiomas se mostra missão quase inatingível para quem tem dificuldades em seguir regras, manter rotinas, estabelecer metas. Sacrifícios, desconfortos, desprazeres para se alcançar objetivos que certamente trarão prazeres reais ao corpo e à alma.
Talvez o problema esteja apenas na nossa visão tupiniquim de prazer. Associamos prazer ao conforto pelo conforto, ao ócio pelo ócio, ao não fazer pelo não fazer. Talvez se apenas substituíssemos a palavra prazer por satisfação nos seria mais fácil assimilar o papel da educação na vida do educando, pois satisfação admite sacrifícios, desconforto, desprazer para ser alcançado.
Penso que para quem não tem a inteligência lógico-matemática, como diz Gardner, não é nada fácil aprender a fazer cálculos, todavia, nos tempos em que a educação era rara, cara e severa, portanto pouco prazerosa, os engenheiros construíram edificações que atravessaram os séculos e perduram até os dias de hoje. Em tempos de educação universalizada, barata e “prazerosa” não conseguimos construir viadutos que durem pelo menos até ser inaugurados. E isso não é uma realidade absoluta. Em países onde a educação é levada a sério bate-se recordes de altura dos prédios, invade-se o mar com obras que desafiam a lógica, modifica-se a natureza fazendo brotar o verde onde só se podia enxergar deserto.
Para quem não tem a inteligência linguística é difícil perceber como um “batatinha quando nasce...” se transforma em um “to be, or not to be: that is the question”. É praticamente impossível o discernimento entre “intenção e gesto”, como diz Chico, quando não se domina a semântica necessária para distinguir o pluralismo de sentidos metaculturais que podem conter um simples verso.
Em resumo, creio que nossos alunos precisam sentir satisfação em estudar, tendo a clareza de saber que adquirir conhecimento não é tarefa das mais fáceis, pelo contrário, adquirir conhecimento acadêmico, científico é desfazer-se, muitas das vezes, dos conhecimentos empíricos passados pelos pais, impostos pela sociedade, o que gera conflitos interiores, exteriores e até ulteriores à convicção do próprio ser.
Adquirir conhecimento envolve muito sacrifício e até um desconforto, mas que é compensado a posteriori por tudo que se pode com ele, por meio dele, realizar.

Por Cristian Menezes 2017