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| Imagem: filósofo italiano Nicolau Maquiavel, do Portal Grande Ponto |
Certamente essa é uma
questão que assombra a humanidade desde que se reconheceu como humanidade.
Certamente também não existe uma fórmula secreta para isso. Mas a Filosofia
traz pistas. Uma delas bem poderia ser uma função da ética que se já dita, não é
tão conhecida. Os livros trazem, resumidamente, a ética como “um conjunto de
valores que servem para orientar o homem no convívio com os seus em sociedade”.
Vendo por esse angulo, a ética é flexível, uma vez que os valores, segundo o
filósofo e sociólogo francês Edgar Morin, são complexos, ou seja, “todo valor
tem no seu contrário um valor também”. Exemplificando, se a honestidade é um
valor, a desonestidade também, afinal, qual casamento se sustentaria sendo os
cônjuges cem por cento honestos um com o outro o tempo todo? “Esse vestido (que
rodei o shopping o dia inteiro para comprar e custou mais do que poderia ter
pago) está bom meu amor?”, pergunta a esposa, sorridente. “Está simplesmente horrível,
meu bem!”, responde o marido. Lá se foi a harmonia do casal pela falta de uma
desonestidadezinha que não faria mal a ninguém.
Mas e se a ética
tivesse uma outra função, que não apenas a de servir como uma bandeira branca
entre os homens para que possam conviver? E se por ética compreendamos
preceitos não tão flexíveis assim e que, exatamente por sua inflexibilidade,
tivessem o poder de mudar o mundo para melhor? Que tal imaginar o século XVIII
com madames desfilando em luxuosas carruagens cercadas de escravos para lhes servir? Imagine as festas suntuosas em grandes mansões em que os escravos eram
enfileirados e postos à amostra como peças integrantes da decoração da casa? E
os leilões de venda de escravos, que, via de regra, se tornavam eventos sociais de grande magnitude, atraindo, entre outros, membros de destaque da sociedade
laica e clerical. Não teria sido a ética de alguns que se revoltaram com a
condição de humanos-escravos que iniciou todo o movimento abolicionista no
mundo inteiro a ponto de essa indignação ecoar pelos séculos e fazer com que
cidadãos ingleses de Bristol “afogassem” no rio a estátua do famoso escravocrata
Edward Colston, agora, mais de 200 anos depois?
A ética inflexível, a
reflexão que toma por base valores de convivência e os mantém incólumes, pode
resultar na indignação, semente das grandes revoluções, que por sua vez têm a
capacidade de mudar o mundo, quase sempre para melhor, pelo menos em teoria. A
escravidão, o tratamento vil para com pessoas iguais, diferentes apenas na cor
da pele, feriu a ética de pessoas preocupadas com os direitos do humano em
geral, não apenas com os nascidos no privilégio da cútis alva. Os valores que
servem de base para essa ética inflexível? Uma delas sem dúvida é a compaixão.
Segundo o Dicionário Aurélio, “Sentimento piedoso de simpatia para com a
tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de minorá-la; participação
espiritual na infelicidade alheia que suscita um impulso altruísta de ternura
para com o sofredor”. O contrário da compaixão? Indiferença, um valor também,
claro, em algumas circunstâncias bem particulares, por exemplo, uma pessoa que
tenha que cuidar de um parente com esquizofrenia em estágio avançado que o achincalha
todas as manhãs por confundi-lo com outra pessoa. Veja que nesse caso
específico, a indiferença chega ser uma dádiva. Porém, caso a escolha dos então
futuros abolicionistas tivesse sido, como o da maioria à época, a indiferença,
hoje ainda teríamos senzalas espalhadas por toda parte e pelourinhos içados nas
praças para castigar aqueles que ousassem falar em liberdade ou em igualdade de
direitos.
A questão aqui,
portanto, é: eu aprendo muito quando flexibilizo, minimizo minha ética para
adaptá-la, ou adaptar-me, a certas circunstâncias, geralmente imediatas. Porém,
eu posso ensinar as pessoas à minha volta, o mundo quiçá, a refletir quando a
mantenho inflexível diante daquilo que me causa indignação, daquilo que prevejo
ser o melhor para a humanidade, seja em curto, médio ou a longo prazo. Não seria, afinal, uma ética intransigente a produzir cidadãos honestos e responsáveis, políticos incorruptíveis, empresários comprometidos com a sociedade?
Não são poucas as
coisas que podemos vislumbrar seria melhor caso deixassem de existir. Também
não são poucas as coisas que estão em processo de mudança, graças, em grande
parte, à ética imutável, incorruptível de alguns corajosos, que aceitam a árdua
tarefa de se tornarem personae non gratae
em seus círculos familiares, de amizades ou até para toda a cidade ou país.
Exemplos? As pessoas que lutam em prol do meio ambiente; pessoas que dedicam a
vida para salvar animais em risco de extinção; pessoas que correm o mundo para
lutar pelos direitos das mulheres a, apenas, aprender a ler ou sentir prazer. E
todas essas mudanças em andamento estão sendo conduzidas por pessoas cuja ética
não flexibilizou para o seu oposto, não se calou, não se escondeu.
Existe uma linha tênue
em flexibilizar a própria ética e tornar-se hipócrita. Afinal, poderíamos dizer
que existe mesmo uma ética, uma reflexão de valores em quem não se incomoda com
nada, em quem em todo lugar se sente bem, em toda situação se vê confortável,
naquele que serve uma ética a la carte ao bel prazer do “cliente”? Não é, pois,
a manutenção de nossos princípios (éticos) que acabam por nos definir como
pessoas?
Mesmo no mérito do
pensamento de Morin - que dizia que o homem deveria acrescentar um demens à sua autodesignação, ficando homo sapiens sapiens demens -, ou seja, racional,
mas também um pouco descomedido, louco -, não podemos perder a noção de que
nossas atitudes, nossas ações, nossas escolhas é que fundamentam o nosso devir. É, portanto, de nossa total e inteira responsabilidade o que nos
tornamos e tornamos o mundo. E se o preço por isso for um pouco de
incompreensão, isolamento…aquele olhar atravessado ao passar na rua ou mesmo aquele convite para
uma festa que todo mundo recebeu, mas não chegou para você…paciência, acho que
vale a pena pagar.
Por Cristian Menezes - 7/2020

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