terça-feira, novembro 13

Poesia: Adeus Minha Senhora (ou Ode aos Desvalidos)

                                           Pawel Kuczynski - Desenhista e pintor polaco

Se vós ainda tendes dúvidas de quem sou e os meus então lhe direi Minha Senhora:
Somos os que bebem
Os que sofrem
Os que choram

Esses somos nós Minha Senhora

Somos os traídos
Os que são iludidos
Os que são punidos

Esses somos nós Minha Senhora

Somos os que desistem
Os que não insistem
Os que nada decidem

Esses somos nós Minha Senhora

Somos os que são abandonados
Os que são maltratados
Os mal amados

Esses somos nós Minha Senhora

Somos as mães solteiras
Os pais ausentes
Os filhos insolentes

Esses somos nós Minha Senhora

Somos os que estão do outro lado da cidade
Do outro lado da felicidade
Do lado frágil da equanimidade

Esses somos nós Minha Senhora

Somos os que ficam, nunca os que vão
Os que esperam, não os que fazem esperar
Os que engolem em seco, não os que fazem engolir

Esses somos nós Minha Senhora

Somos os que se alegram com pouco, porque nunca tivemos muito
Somos os que só se entristecem com muito, porque a dor nunca nos vem aos poucos
Somos os que ficam de fora, no entorno, nos fundos, porque nunca somos convidados a entrar
Esses somos nós Minha Senhora

Somos revoltados, mesmo sem termos vivido a Justiça
Somos invejosos, sem mesmo saber o que é cobiça
Medrosos, mesmo sem entender o significado de coragem

Portanto, não se assuste Minha doce Senhora

Quando nos embriagamos
Quando aparentamos não sofrer
Quando as lágrimas não escorrem

Se, por acaso, trairmos
Iludirmos
Ou punirmos

Se decidirmos
Insistir
Em não desistir

Se abandonamos
Quem nos maltratam
Os que não nos amam

Se cruzarmos a ponte
Em busca de felicidade
Mesmo que apenas na dignidade

Se depois de muito esperarmos
Resolvermos partir
Para não mais engolir

E quando partirmos, Minha linda Senhora,
Não nos guarde rancor nem te sintas culpada,
Não foi vós, Minha Senhora, que nos fez partir,
Fomos nós, apenas nós cansados de sermos nós mesmos…

Por Cristian Menezes em 11/18




Ensaio: sobre fidelidade e lealdade



Ultimamente tenho refletido muito sobre isso: fidelidade X lealdade. Penso que nesse caos em que se tornou nossos relacionamentos, nossos valores e até nosso discernimento sobre tudo e todos parece ser importante saber a diferença entre uma coisa e outra. Vejo que com a chegada das ditas redes sociais muitos relacionamentos estão se perdendo e não raras vezes a culpa vai para a infidelidade. Embora se confundam, lealdade não é a mesma coisa que fidelidade. A saber, há pelo menos quatro possibilidades: pode-se ser fiel e leal; fiel e desleal, infiel e desleal; só o que não se pode ser é infiel e leal ao mesmo tempo, pelo menos não dentro de uma concepção, digamos, convencional, ortodoxa, o que explicarei melhor na sequência.

Explicando
De forma simples e direta, ser fiel é não enganar o parceiro ou parceira sexualmente ou emocionalmente. É, portanto, uma regra, um preceito que se escolhe cumprir ou não, consciente, é claro, de suas consequências. Já lealdade é algo mais profundo que fidelidade, tem a ver com valores, elevação ético-moral e até sacrifício e sublimação. Fidelidade é sinônimo de paixão, desejo. Já lealdade é amor, dádiva, entrega. Fidelidade é físico, lealdade é metafísico, ou, para falar a linguagem de hoje, “fidelidade é conexão com fio…lealdade é conexão wifi”, como li em um site.

Exemplificando
Na prática isso tudo fica um pouco complicado, mas vamos lá. Se a pessoa é fiel por tabela ela é leal, é o Santo Graal dos relacionamentos bem-sucedidos. A pessoa leal deve ser fiel por convicção. Se não o for ou deixar de ser põe a lealdade em xeque (mate); fiel e desleal, bom, aqui tenho que apelar para um jargão muito utilizado, mas, ao meu ver, também muito errado: “A ocasião faz o ladrão”. Não, quem rouba, rouba porque é ladrão e pronto. “A ocasião REVELA o ladrão”, aí sim, ficaria correto. Honestidade é uma convicção ética, um valor. Assim como a lealdade. Se a pessoa é fiel e desleal, significa que é fiel por medo, por comodidade ou mesmo por falta de oportunidade. O problema é que o fiel e desleal uma hora pode se REVELAR infiel; Infiel e desleal é o básico, feijão com arroz dos relacionamentos malsucedidos, pois quando se chega a ser infiel, a lealdade já deixou de existir ou talvez ainda não tenha nem nascido, tem muito disso em início de relacionamento; infiel e leal, como diria um amigo meu, “é uma incongruência filosófica”, pois se ser leal é um valor ético, jamais combinará com a infidelidade, que é, a grosso modo, um vício moral. Infidelidade não faz parte do vocabulário de uma pessoa leal à outra, já que ser leal, entre outras coisas, é cuidar, valorizar, incentivar, respeitar (no sentido de pensar o outro antes de agir).
Aqui, agora, cabe uma observação: lealdade e infidelidade só é possível se ser infiel for uma condição da lealdade para a outra pessoa. Complicou não é? Então…fora do convencional, infidelidade e lealdade pode ser possível em relacionamentos ditos abertos, do tipo ninguém é de ninguém, ou em casais que praticam o swing (troca de casais), ou mesmo pessoas que se satisfazem, e às vezes só se satisfazem, vendo o parceiro ou parceira tendo relações com outro(a) ou outros(as). Percebam que nestes casos a infidelidade não só foi admitida como exigida, porém, não significa que qualquer pessoa possa ser leal a esse ponto, pois se lealdade é um valor, o é individualmente e somente a própria pessoa sabe quais seus limites. Outro exemplo clássico, mas talvez se torne polêmico sendo abordado por esse prisma, é a questão entre Cristo e Judas. Penso que quando Jesus, na Santa Ceia, disse “Com toda certeza vos afirmo que um dentre vós me trairá” (Matheus 26), quis tão somente reforçar “vai lá Judas e faz o que tens que fazer, pois é o que eu quero que faças”, tanto, que, em João 13:18 Ele justifica “mas é necessário que isso ocorra para que se cumpra a Escritura: ‘Aquele que partilhava do meu pão levantou-se contra mim’”. De todos os apóstolos, só Judas conseguiu ser tão leal ao Mestre a ponto de lhe ser infiel, mesmo tendo sido corroído depois pelo limite de sua própria lealdade.

Concluindo
Dito isto, vejo pessoas muito preocupadas com a infidelidade, quando, na verdade, o problema mesmo está na deslealdade. Infidelidade causa dor, porque está associada ao sentimento de posse, mas a deslealdade destrói nossos sonhos de amor verdadeiro. A infidelidade assusta, mas a deslealdade imprime em nossas almas o medo e a desconfiança. A infidelidade nos deixa irados, com raiva do outro; mas a deslealdade nos entristece profundamente e nos faz perder o respeito por si e pelo outro. A infidelidade se resolve pondo fim no relacionamento, já a deslealdade sobrevive ao fim do relacionamento e vira uma marca deletéria em nossos corações. E é justamente aí onde tudo se perde. Não existe relacionamento que resista à deslealdade, à desconfiança e à perda do respeito.

Por Cristian Menezes em 9/2018

Poesia: Conversando com o passado



O passado às vezes volta, entrando por uma janela que a gente mesmo deixou entreaberta. Ele espreita nossos erros, nossos medos, nossas angustias e de repente se nos revela, assim, do nada, com os braços abertos e aquele sorriso cínico, indigesto, como quem diz: “Como você se atreve a sonhar ser feliz sem mim???”
Minha fraqueza me faz retribuir o abraço, mesmo cheio de repulsa, mesmo com o estomago embrulhado… abraço meu verdugo viajante do tempo e por um momento quase peço desculpas pela minha ousadia, pelo meu atrevimento, pela minha desobediência.
A verdade é que, não fosse ele, o meu passado, parte irascível de mim, o repeliria dizendo: “Quem pensas que és para querer tirar-me a esperança de ser melhor do que fui???”.
Mas a Lembrança, protetora do meu passado, surge como um cão enfurecido e grita: “Ei!!! Tudo que ele fez, fez com você, junto contigo, com sua permissão, em conluio!!!”.
“Como expurgá-lo, como enterrá-lo, como ceifá-lo de meu presente sem arrancar um pedaço de mim?”, pergunto. “Ele é a brisa que vai virar chuva para umedecer minhas plantas ou a tempestade que destruirá meu jardim? Ele é o raio de luz que iluminará meus sonhos ou o cogumelo radioativo que alimentará meu pior pesadelo? Ele é sopro que se transformará em vento para içar as velas do meu destino rumo a calmos mares ou a ventania que me arrastará de vez para as minhas profundezas?”
Abraçá-lo-ei sim, mas não como quem a um amigo recebe, ou contra um inimigo conspira; simplesmente com a calma de quem se despede de alguém que nunca conheceu, com a fugacidade da saudade do que nunca se viu… e não pedirei perdão por ousar, por querer ser feliz sem ele, apenas lastimarei não poder vir comigo, pois ele é como o velho sábio que ensina, mostra o caminho, acena de longe, mas permanece no mesmo lugar, parado, referência do que já fui e que não quero tornar a ser; inspiração para ser melhor do que seria se dele não lembrasse mais…
Por Cristian Menezes em 4/2018

De Pilha para Pilha


Duas pilhas AA, uma comum, das “amarelinhas” e outra bateria de longa duração conversam sobre suas vidas úteis.
- Oi, como vai sua vida útil? Indagou, cheia de soberba, a AA-Bateria.
- Vou levando, como o meu dono quer! Respondeu, humildemente, a AA Amarelinha. Parece que, como sempre, anda cheia de energia ainda, não é? Toda lustrosa e sem sinais de ferrugem…
- Claro, minha querida Amarelinha. Só sou usada com parcimônia e geralmente em produtos que requerem pouco o meu uso, como, por exemplo, o depilador de minha dona. Pena que não possa falar o mesmo de você! O que tens feito, a que e com quem tens dispensado toda tua parca energia amiga?
- Bom. Ponderou a AA amarelinha. Como sei que minha vida útil não é grande coisa mesmo, grande coisa não poderia esperar de quem me usa, muito menos para que. Aliás, tenho me desgastado em dobro, pois à noite sou usada em um radinho de pilha que serve de companhia, a única se bem me lembro, para um senhorzinho que passa o dia catando lixo pelas ruas para garantir o sustento dele e do neto que ele cuida desde que nasceu e durante o dia, às vezes, ele, o netinho, vem, me arranca e me coloca em um ioiô com leds coloridos, presente do avô catado pelas ruas.
- Que vida útil horrível querida Amarelinha!!! Exclamou a AA-Bateria, meio que tripudiando da “amiga”.
Ah! Amiga Bateria, acho realmente que não! Respondeu a AA Amarelinha. Acho que o segredo de tornar nossa vida últil realmente útil é justamente em não pensarmos em nós, em nossa vida útil, mas a quem e para que doamos nossa energia. A mim, parece que só assim nossa vida útil faz algum sentido, do contrário somos só pilhas sendo usada e descartadas aos milhares, aos milhões todos os dias.
Sabe outra coisa? Continuou a Amarelinha. Percebemos como nossa energia está sendo bem utilizada pela importância que aqueles que nos usam nos dá. Meu velho dono, por exemplo, nunca adormece sem desligar o radinho, mesmo quando o fardo da labuta lhe pesa por demais. Confidencia ele: “Preciso poupar minha pilhinha para amanhã”. O netinho também. Sempre que de mansinho me tira do rádio e me coloca, com cuidado, no ioiô abre um enorme sorriso. E sempre que me tira do ioiô para me devolver ao rádio do avô carinhosamente me limpa com a barra da camiseta surrada e me olha como que agradecendo por aqueles minutos de diversão.
Isso realmente faz da minha vida útil uma vida útil, pois cada minuto, cada segundo de energia que desprende de mim sei que é para fazer alguém se sentir bem, feliz ou pelo menos acalantada. Se tenho um resquício de inveja de ser uma AA-Bateria como você é só porque se o fosse, imagina quantas horas, dias não teria para me doar a essas pessoas que de minha energia tanto necessitam.
A AA-Bateria emudeceu diante dos “devaneios” da AA Amarelinha, um pouco por inveja da eloquência dela, certamente adquirida pelas horas ouvindo músicas e apresentadores, um pouco por, ao ouvir a Amarelinha, passava-se um filme no pensamento dela sobre a quem e como gastou sua energia por quase toda sua vida útil.
Para piorar, a AA-Bateria ao deixar a companhia da AA Amarelinha deparou-se com nada menos que uma AA Recarregável. Toda garbosa, presunçosa e indiferente, típico das AA Recarregáveis, sequer notou a presença da AA-Bateria.
- Mestra, senhora AA Recarregável, posso lhe fazer uma pergunta? Disse, a agora humilde AA Bateria.
Recebendo apenas o silêncio como afirmação, a AA Bateria continuou.
_ Acabei de ter uma conversa com uma amiga que me deixou muito confusa, até mesmo triste e pensativa. Por favor me diga, quem e para que usam tua energia eterna. Vale a pena tua vida útil?
Depois de algum tempo de silencio, a AA Recarregável respondeu.
- Antes de tudo, frágil AA Bateria, quem diz que sou eterna és tu. Algo nunca provado, pois normalmente sou perdida, doada, abandonada antes que chegue o meu fim, coisa que de certo deve haver, pois tudo no mundo é finito. Sobre quem me usa, pouco sei, já que pouco me usa e sobre para que ou em que sou usada muito menos, já que passo pouco tempo dentro de algum aparelho e logo sou posta de volta no meu carregador, que, aliás, se sou dependente é mais dele do que de alguém.
Sobre minha vida útil, só posso concluir que é diretamente proporcional ao que valho. Custo muito, portanto poucos me possuem e os que possuem pouco me usam. Os que possuem pilhas como eu cuidam bem, muito bem delas, não por aquilo a que servem ou a que sirvo, a que dedico minha energia, mas simplesmente por custar muito.
Para lhe dizer bem a verdade, e que fique entre nós, pilhas da parte de cima da prateleira, se sinto algo nessa minha vida de Recarregável é inveja das amarelinhas lá debaixo da prateleira. Elas sim têm uma vida útil útil de verdade. Não duram muito, é verdade, mas sua pouca duração, sua parca energia é gasta geralmente por quem realmente precisa delas e em algo que para eles fazem uma grande diferença.
- Espero que tenha sido útil! Despediu-se a AA Recarregável da AA Bateria.


Por Cristian Menezes em 11/2018

Um sonho sobre liberdade


Quando era mais jovem tinha um sonho recorrente, que costumava chamar de “um sonho de liberdade”. No sonho, abria os olhos e estava no alto de uma montanha bem diante de um maravilhoso pôr-do-sol, com céu límpido e resplandecente. De braços abertos, via uma águia enorme planar sobre mim e depois voar rumo ao pôr-do-sol. Sua plumagem era negra e cintilante, com penas brancas na cabeça e ao redor do pescoço. Emitia um grito, um assobio agudo e marcante. Ai eu fechava os olhos e não estava mais em pé na montanha. Eu era o pássaro. Podia sentir o vento sob minhas asas e o calor aconchegante do sol sobre elas.  Voava, e ao voar podia sentir o vento batendo na minha cara e entrando nas minhas narinas. É como se as horas não passassem e tudo me fosse permitido, até não fazer nada. Não precisava mais falar, ler, acordar, dormir, pensar, estudar…sequer trabalhar para prover meu próprio sustento eu precisava. Naquele momento me sentia livre, livre como nunca, o ser mais livre do universo.
Mas certa vez esse sonho mudou, e mudou para sempre. Nele, abria os olhos e não via mais o pássaro pairando no ar. Estava sozinho na montanha. Quando fechava os olhos, não me sentia pássaro, mas eu mesmo, simplesmente eu, maravilhosamente HU-MA-NO. E como tal, pela primeira vez na vida, entendi o que REALMENTE é ser livre.
Percebi que como humano também podia voar, de diversas formas diferentes e em todas as direções que quisesse - não só em mergulhos velozes como as águias, ou para frente e para trás como o beija-flor -. E como humano podia não só voar, mas também andar – de pés, sobre uma roda, duas, quatro…quantas rodas quisesse…sobre trilhos, lâminas, pranchas. Apesar de ter pés, andar para os pássaros é improvável, frágil, fatídico.
Como humano, além de voar e andar, podia saltar, rolar, mergulhar, sim, mergulhar, pois como pássaro, apesar da capacidade de produzir uma substancia para impermear as penas, seus mergulhos, restritos a apenas algumas espécies, são rápidos, sincrônicos…como humano, nem o céu, nem o chão, nem as águas eram limites, poderia chegar à lua, a profundezas abissais.
Os pássaros revestem-se de lindas e coloridas penas e podem atém trocá-las de quando em quando, mas sempre pelas mesmas penas e pelas mesmas cores conforme seu gênero, família e ordem. Também conforme sua ordem, família e gênero é o seu canto, e, por mais maravilhoso que seja, é sempre o mesmo, no mesmo tom. Como humano poderia vestir-me como quisesse, com as cores que escolhesse…vestia calça, camiseta, camisa, terno, paletó, saia, vestido, pijama…de cores iguais, diferentes, multicores, se quisesse, sequer me vestiria, sairia assim, na pele, “no pelo” mesmo. Cantava, e cantava alto, baixo, em diversos tons, gritava, gemia, e mais, tocava, dançava e sapateava… como humano independo de taxonomia que me classifique…crio e me recrio ao meu bel prazer.
O que sentia como pássaro e que confundia com liberdade, era, na verdade, de um niilismo intoxicante. Poder não fazer nada, é não ter nada para fazer. Como não tenho nada para fazer, se posso fazer tudo e mais um pouco, mais do que qualquer outro ser da Terra? E de tudo que posso fazer meu único limite é o tempo que tenho para fazê-lo. Portanto, o tempo, os anos, os dias, as horas são importantes para minhas realizações. Preciso, sim, me organizar, me preparar, me formar, me informar…para crescer, engrandecer, contribuir, retribuir…para ser HUMANO.
E quanto ao meu sonho…bom, descobri que não era “um sonho DE liberdade”, mas “um sonho SOBRE liberdade”.

Por Cristian Menezes em 6/2018

Ciência para a longevidade


Não se engane. A ciência como a conhecemos hoje nasceu para tornar-nos humanos longevos e não humanos melhores. Há, aparentemente, um paradoxo entre qualidade de vida e longevidade. Holisticamente falando, qualidade de vida tem a ver com convivência, coexistência, ética, meio ambiente, ecologia, sustentabilidade e tanto outros aspectos da “vida humana” que não constam, necessariamente, do vocabulário científico.
Talvez o problema não esteja propriamente na ciência, mas na visão que foi construída dela ao longo dos tempos. Os egípcios mumificavam seus faraós para que eles chegassem ao outro mundo, no mundo dos mortos, onde viveriam para sempre com suas pompas e dotes físicos e/ou intelectuais intactos. Os alquimistas, na busca pelo elixir da vida eterna, desenvolveram, por acidente, fórmulas que no futuro se transmutariam em eficazes medicamentos. Mesmo os físicos, em sua luta secreta e obstinada pelo que viria a se chamar medicina, visavam a cura para os males que à época afligiam a humanidade, menos para tornar o homem mais humano, mas mais para torna-lo supra-humano, imortal, por assim dizer.
Esperamos da ciência a cura, o “conserto” para nossos defeitos morais, para nossa ganância, nosso individualismo, nossa mediocridade, nossa pequenez, nosso niilismo travestido de ideologia capitalista…, mas a ciência não está aí para isso. Pensamos que como ela nos fez chegar à lua, decifrar o código genético, produzir a Dolly, reconstituir tecidos, transplantar órgãos, gerar energia do núcleo de uma célula…poderia, também ou à medida em que, nos transportar a mundos subjetivos dentro de nós mesmo, nos decifrar, nos reproduzir melhores, reconstituir nossos significados, transplantar nossas esperanças, gerar uma energia do âmago de nossos desejos mais sombrios que acendesse em nós uma chama perene de altruísmo…mas a ciência nunca serviu a isso, não serve a isso e talvez nunca venha a servir a isso.
Aquilo que a ciência produz, nem sempre nos torna melhores e, por vezes, e não raras vezes empobrece nosso espirito e afronta nossas melhores expectativas. Os meios de que abre mão para chegar a determinados fins nem sempre são justificados, e mesmo o fim a que se chega é garantia de sucesso, pois aqui, numa espécie de limbo ético em que se colocou ou colocaram a ciência, longe dos olhos críticos de uma lisura pragmática, apofântica, sucesso sequer é, necessariamente, sinônimo de júbilo, prosperidade, esperança, proficuidade.
A ciência é imanente. Cria ferramentas, mas não escolhe quem as usará nem como, a ciência facilita a existência, mas não impõe a quem a existência será facilitada, a ciência busca, mas não se sabe bem o que, para quem ou mesmo quando. Como panteões do conhecimento, oráculos de um futuro somente imaginável nos prostramos e reverenciamos aqueles que fazem a ciência, como se fossem eles mestres de uma sabedoria superior, atemporal, metafisica, quando, na verdade, por debaixo dos jalecos alvos tremulam apenas mais de nós mesmos, seres temerosos pelo porvir, decepcionados pela incongruência entre o muito que pensam saber e o infinito do que têm certeza que há,  que, se em algo diferem de nós, não-cientistas, é apenas em não aceitar, não se submeter e até indignar-se ao irremediável e incontestável fato de sermos apenas o que somos: humanos demasiado humanos.

Por Cristian Menezes em 10/2018

Heróis de ontem, heróis de hoje


Houve tempos em que heróis singravam os mares nunca antes navegados em busca de novos mundos; parcos exércitos contra um sem-número de inimigos, três centenas contra dezenas de milhares a defender com lanças e escudos o indefensável, uma guerra já perdida; cavaleiros intrépidos investiam contra o que viam pelas frestas de suas armaduras reluzentes a respingar honra e gloria em nome de reinos invisíveis; alexandres erguiam alexandrias sobre almas pagãs; pequenos pilotos em grandes aeronaves silenciavam guerras com gritos de desespero e dor. Grandes feitos, alguns gloriosos outros nem tanto,mas sempre por um bem maior, um ideal que parecia valer a pena para tantos.
Os heróis de hoje travam outras batalhas, em outras guerras e com outras armas. Singram os mares da própria consciência, não em buscam de novos mundos, pois todos já foram explorados, buscam a si próprios; não mais poucos contra muitos, são todos contra todos por sabe-se lá o quê; investem uns contra os outros despudoramente despidos de quaisquer virtudes, sem honra, sem glória; pelas frestas das armaduras de hipocrisia só se veem moinhos de esperanças que insistem em ficar de pé, mesmo golpeados; joãos, josés, marias não erguem nada, nada constroem que se dignem empostar seus nomes; todos são pilotos, todos são alvo dentro de dantesca e única nave decadente e contaminada, só os gritos ainda ecoam em suas mentes.
O herói de agora é aquele que, apesar de tudo, consegue chegar ao final com os seus ao seu lado. A batalha é para manter a dignidade, o próprio respeito. Os inimigos são a cobiça, a ganância, a deslealdade, a falsidade e os falsos profetas, que vociferam contra vícios aos quais eles mesmos sucumbiram, que se afogam em águas que antes, no início, juraram manter-se distantes.
Somos todos desgarrados soprados pelo Minuano carregado de saudade. Viramos copos, viramos mundos, mas nunca mais nada será como antes, profetizou o poeta. Como na antiguidade, a pitonisa veio, e vem, em forma de pele, osso e grandes orelhas, sem passado e sem presente, e ninguém entendeu, e entende, a mensagem, pois não estava nas palavras balbuciadas em um castelhano etílico, mas na imagem de si mesmo. O que dizia a mensagem? “Eu sou você amanhã”. E ninguém estava, e está, lá quando a hora dele chegou, e chega, como havia e há de ser. Um herói desgarrado, ou um desgarrado que sonhou, no final, ser herói?
Desgarrados agora somos todos nós. E o que o vento traz é só a lembrança de quando todos se sentavam em torno da távola retangular imensa, de madeira, com tampo espesso, a esperar pela sopa de ossobuco com Milharina servida em pratos fundos enfileirados no parapeito da janela, pela pizza feita na forma de fogão com tampa com garras de filtro de ar de carro velho, pela carne assada bem passada, quase queimada e a maionese sem maionese.
Desgarrados, náufragos em um mar de incertezas fitando, ao longe, pequenas ilhas, terra-firme, cujos olhos marejados não permitem, sequer, distinguir se são reais ou apenas miragens.

Por Cristian Menezes em 9/2018