sexta-feira, fevereiro 14

Conversa com o passado

O passado às vezes volta, entrando por uma janela que a gente mesmo deixou entreaberta. Ele espreita nossos erros, nossos medos, nossas angustias e de repente se nos revela, assim, do nada, com os braços abertos e aquele sorriso cínico, indigesto, como quem diz: “Como você se atreve a sonhar ser feliz sem mim???”

Minha Fraqueza me faz retribuir o abraço, mesmo cheio de repulsa, mesmo com o estomago embrulhado… abraço meu verdugo viajante do tempo e por um momento quase peço desculpas pela minha ousadia, pelo meu atrevimento, pela minha desobediência.

A verdade é que, não fosse ele, o meu passado, parte irascível de mim, o repeliria dizendo: “Quem pensas que és para querer tirar-me a esperança de ser melhor do que fui???”.

Mas a Lembrança, protetora do meu passado, surge como um cão enfurecido e grita: “Ei!!! Tudo que ele fez, fez com você, junto contigo, com sua permissão, em conluio!!!”.

“Como expurgá-lo, como enterrá-lo, como ceifá-lo de meu presente sem arrancar um pedaço de mim?”, pergunto. “Ele é a brisa que vai virar chuva para humedecer minhas plantas ou a tempestade que destruirá meu jardim? Ele é o raio de luz que iluminará meus sonhos ou o cogumelo radioativo que alimentará meu pior pesadelo? Ele é sopro que se transformará em vento para içar as velas do meu destino rumo a calmos mares ou a ventania que me arrastará de vez para as minhas profundezas?”

Abraçá-lo-ei sim, mas não como quem a um amigo recebe, ou contra um inimigo conspira; simplesmente com a calma de quem se despede de alguém que nunca conheceu, com a fugacidade da saudade do que nunca se viu… e não pedirei perdão por ousar, por querer ser feliz sem ele, apenas lastimarei não poder vir comigo, pois ele é como o velho sábio que ensina, mostra o caminho, acena de longe, mas permanece no mesmo lugar, parado, referência do que já fui e que não quero tornar a ser; inspiração para ser melhor do que seria se dele não lembrasse mais…

Cristian Menezes 04-2018


Adeus Minha Senhora (ou Ode aos Desvalidos)

Se vós ainda tendes dúvidas de quem sou e os meus então lhe direi Minha Senhora:

Somos os que bebem

Os que sofrem

Os que choram


Esses somos nós Minha Senhora


Somos os traídos

Os que são iludidos

Os que são punidos


Esses somos nós Minha Senhora


Somos os que desistem

Os que não insistem

Os que nada decidem


Esses somos nós Minha Senhora


Somos os que são abandonados

Os que são maltratados

Os mal amados


Esses somos nós Minha Senhora


Somos as mães solteiras

Os pais ausentes

Os filhos insolentes


Esses somos nós Minha Senhora


Somos os que estão do outro lado da cidade

Do outro lado da felicidade

Do lado frágil da equanimidade


Esses somos nós Minha Senhora


Somos os que ficam, nunca os que vão

Os que esperam, não os que fazem esperar

Os que engolem em seco, não os que fazem engolir


Esses somos nós Minha Senhora


Somos os que se alegram com pouco, porque nunca tivemos muito

Somos os que só se entristecem com muito, porque a dor nunca nos vem aos poucos

Somos os que ficam de fora, no entorno, nos fundos, porque nunca somos convidados a entrar


Esses somos nós Minha Senhora


Somos revoltados, mesmo sem termos vivido a Justiça

Somos invejosos, sem mesmo saber o que é cobiça

Medrosos, mesmo sem entender o significado de coragem


Portanto, não se assuste Minha doce Senhora


Quando nos embriagamos

Quando aparentamos não sofrer

Quando as lágrimas não escorrem


Se, por acaso, trairmos

Iludirmos

Ou punirmos


Se decidirmos insistir

Em não desistir


Se abandonamos

Quem nos maltratam

Os que não nos amam


Se cruzarmos a ponte

Em busca de felicidade

Mesmo que apenas na dignidade


Se depois de muito esperarmos

Resolvermos partir

Para não mais engolir


E quando partirmos, Minha linda Senhora,

Não nos guarde rancor nem te sintas culpada,

Não foi vós, Minha Senhora, que nos fez partir,

Fomos nós, apenas nós cansados de sermos nós mesmos…


Por Cristian Menezes – 12/11/18




Farewell My Lady (or Ode to the Invalid)



If you still have doubts of who I am and mine then I will tell you My Lady:

We are the ones who drink

Those who suffer

Those who weep


These are us, my lady.


We are the ones brought

Those who are deceived

Those who are punished


These are us, my lady.


We are the ones who give up

Those who do not insist

Those who decide nothing


These are us, my lady.


We are the ones who are abandoned

Those who are mistreated

The badly loved ones


These are us, my lady.


We are single mothers

The absent parents

The insolent children


These are us, my lady.


We are the ones on the other side of town.

The other side of happiness

On the fragile side of equanimity


These are us, my lady.


We are the ones who stay, never those who go

Those who wait, not those who make them wait

Those who swallow dry, not those who make swallow


These are us, my lady.


We are the ones who rejoice with little, because we never had much

We are the only ones who are saddened with much, because the pain never comes to us bit by bit

We are the ones who stay outside, in the surroundings, in the back because we are never invited to enter

These are us, my lady.


We are revolted, even without having lived the Justice

We are envious, without even knowing what greed is

Fearfuls, even without understanding the meaning of courage


So do not be afraid My sweet lady


When we get drunk

When we pretend we do not suffer

When the tears do not run


If, by chance, we betray

We deceive

Or punish us


If we decide

To insist

In not giving up


If we abandon

Who mistreat us

Those who do not love us


If we cross the bridge

In search of happiness

Even if only in dignity


If after long we wait

Resolve to leave

Not to swallow anymore


And when we leave, My beautiful Lady,

Do not hold grudges or feel guilty,

It was not you, My Lady, who made us leave,

It was us, just us tired of being ourselves ...


Do logos à episteme


 

Quem disse que aprender é fácil. Esse, meu caro, errou e errou feio.

Arrancar do amago da vida a verdade, Aquilo que difere o belo da fealdade

Que traduz o desvio em esteio. É tarefa árdua, pois é o fim, não o meio


Dos numerais tirar a lógica do universo. E dela, a razão entre côncavo e convexo

Das “logias” o entendimento maior de nós mesmos

Ver na agonia, no caos em que vivemos, 

O sentido maior do porquê nascemos,

aquilo que justifique nossa dor, nossos complexos.


Do estudo da Terra e suas grafias, entendê-la como Gaia, mulher, mãe e finita

Para além dos seus “cardeais”, sua “Geo”, suas entranhas, estranhas, intrínsecas, perceber

Gaia como “alguém”, que nasce, cresce, envelhece e pode perecer. 

“Alguém”, que como todo mundo, não pode só ofertar, dar, sem nada receber. 

Tratados, promessas hão de enternecê-la, mas cuidado e respeito é o que Ela espera 

daquele ser, sapiens, filho… que a habita.


“Eu sou o que sou aqui e agora”, dizem os céticos imediatistas

Legando à História meras lembranças, brisas de esquecimento

Mas querer saber quem sou sem saber quem fui, reaprender a si mesmo a todo momento

É no mínimo uma didática niilista, que desaprende o valor da experiência 

e nos torna meros errantes, ingênuos otimistas 

É uma matemática existencialista simples: quem fui mais o que sou resultando em um EU melhor, 

Menos caótico, menos insensível.


Do pó ou da ameba? Eis a questão? A Biologia diria que não

Os seres vivos muito mais coisas são

que tão somente, meramente a teimosa teima

Entre um inglês e a Católica Santa Igreja

Não tem só a ver com o Monera, o Fungi ou o Protista

Observar, classificar os vivos muito mais conhecimento enseja

Dela depende quanto tempo temos e poderemos ter


Sem ela não teria o remédio que cura a doença

A bebida que inebria e faz suportar

A tabela que periodiza todos os elementos

Faz do químico ao alquimista seu altar

É a mesma que eleva e pode destruir

É a tal da Química que salva e pode matar

(inacabada)

Cristian Menezes

Minh'alma, o tempo e você



Não eu, mas minha alma resolveu te esperar

Não no meu tempo, mas no tempo dela

Sei lá quanto tempo do meu tempo isso pode levar

Só sei que no tempo da minha alma pode ser muito tempo


Não eu, mas minha alma resolveu te dar uma chance

Não chance para mudar o corte do cabelo, o estilo das roupas…

Mudar, para minha alma, tem a ver com forma de pensar, de agir, de ser…

Não mudar de cidade, estado, país…mudar o âmago, o profundo…o destino


Não eu, mas minha alma resolveu te esperar

Não como eu, que te esperaria por um dia, um mês, um ano…

Minha alma pode te esperar por décadas, séculos, milênios


Não eu, mas minha alma sabe que pode te encontrar de novo

Não numa esquina, num bar, numa festa…

Mas em outra pessoa, outro ser, outra era


Não eu, mas minha alma insiste que foram feitos um para outro

Me contraria em dizer que não foi um fim, apenas um longo, longo “tempo”

Um “tempo” num lugar onde o tempo não existe


Não eu, mas minha alma garante que já te conhecia

E que o tempo em que estivemos juntos

Foi um dos reencontros depois de muito, muito tempo


Não eu, mas minha alma diz, que desde o primeiro encontro

Você e ela mudaram muito, se aproximaram mais

Mas ainda não o suficiente para viver juntos por uma vida


Não eu, mas minha alma resolveu te esperar

Não porque quer, confidenciou, mas porque precisa

Não pelos encontros e desencontros aqui, onde o tempo tem tempo certo para acontecer

Mas porque em algum momento, num lugar onde não há tempo

A tua alma e a minha eram uma só.




Cristian Menezes 03/2020


Sobre nossos paraísos


    
Uma pessoa que gosto muito me disse certa vez: “Já vi o paraíso!”. E me descreveu o paraíso dela com saudosismo e um pouco de tristeza, como alguém que jamais poderá voltar a um lugar que achou muito especial. E não vai poder voltar não porque não queira, mas porque o tal lugar já não existe mais.

    Pensei muito sobre isso e gostaria de ter lhe dito que o paraíso, mesmo aquele lá do Genesis da Bíblia Sagrada, estava em constante mudança.

    A começar pelo fato de ter sido projetado para apenas um inquilino e bem mais cedo do que se esperava já era habitado por quatro pessoas. Aquele paraíso não era um mundo apenas de felicidade eterna. Tinha problemas também, um deles muito grave até, o que resultou na redução da população para três.

    O que gostaria de lembrar a ela com essas palavras é que os paraísos mudam e nós também.

    O que não podemos, nunca, é deixar de acreditar que eles existam e, principalmente, que somos dignos de habitá-los. Talvez não tenhamos um paraíso como aquele que vivenciamos, do mesmo jeitinho que era o outro, mais ainda assim podemos fazer dele um bom paraíso. O que importa é que no novo paraíso tenha amor, carinho, cumplicidade, respeito e dignidade.

    Penso que podemos e devemos buscar outro, ou outros, paraísos, mas precisamos tomar os caminhos certos, legítimos.

    Acho que, infeliz ou felizmente, não há atalho para os novos paraísos. Geralmente são caminhos tortuosos, escorregadios, às vezes difíceis de continuar…mas no final sempre vai valer a pena. O mapa para o bom paraíso está em nós mesmos nunca nos outros. Procura com carinho dentro de você, dentro do teu coração que você vai voltar a enxergá-lo. E aí é só pôr o pé na estrada.


Cristian Menezes – 8/2020


quinta-feira, fevereiro 13

Flores de papel

 

Guardamos nossas flores de papel...

Um gesto simples, que macula o poder de palavras que não deveriam ser ditas

Desmente atitudes que não poderiam ser tomadas

E deixa nas mãos dos que as ofertaram, não perfume, como rezam os poetas,

Mas intenções de sabores ainda não provados

 

Guardamos nossas flores de papel...

E com elas, os sorrisos, os olhares, os toques na pele, o cheiro do cabelo...

Não são majestosas como as rosas, elegantes como as tulipas ou perfumadas como os lírios

A magia delas está no carinho das mãos que se tocaram antes de fazê-las

e dos lábios que se uniram antes de oferece-las um ao outro

 

Guardamos nossas flores de papel...

Mas se guardá-las teve algum significado maior que a própria gentileza,

somente quem as guardou pode saber

Nem o tempo, que tudo espreita, nem o desejo, que tudo quer

podem prever o que floresce ou desvanece em nossos pensamentos

 

Guardamos nossas flores de papel...

Mas as guardamos como se guarda os sonhos e o vento, que se extinguem com o despertar e o nascer do sol?

Ou as guardamos como se guarda a saudade e a lembrança do sabor de um ótimo beijo, que se enebriam de desejo na ausência para depois se entorpecer de prazer em um esperado reencontro? 


Cristian Menezes 05-2024

 

sexta-feira, maio 13

Uma sociedade que não ruboriza, robotiza

Ouvi em um documentário sobre vida animal, que apenas o homem, entre todos os animais, tem a capacidade de ruborizar. Não havia pensado sobre isso, ainda, mas sim entre todos animais da Terra apenas o ser humano tem a capacidade de corar o rosto. O importante nessa história é o porquê dele agir assim.
Penso que enrubescemos por diversos motivos, inclusive por raiva. Mas o que quero observar aqui é a capacidade do homem ruborizar pela vergonha, pelo constrangimento. Corar o rosto por ter sido pego em uma mentirinha, em ter um segredo, antes guardado a sete chaves, repentinamente revelado, uma fala de um interlocutor que tenha afetado sua noção de pudor…e é exatamente ai aonde quero chegar, no pudor.
Pudor, sentimento de vergonha, timidez, mal-estar por algo que fere a decência, a modéstia, a inocência…mas também um alerta contra a naturalidade de exibir certas partes do corpo, se expor…o pudor, portanto, varia de cultura para cultura, de criação para criação, porém, há, e sempre há, um senso comum sobre tudo isso, independente do momento em que se vive. “Cobrir as partes”, como os antigos diziam, remonta à Adão e Eva, o Paraíso, o Pecado Original e toda essa parafernália religiosa, que, amiúde, precisamos para viver em sociedade, em qualquer sociedade, com o risco de não haver sociedade, algo como, salva as devidas proporções, o código de Hamurabi, polêmico, mas necessário.
Nestes nossos tempos “líquidos”, como dizia Zygmunt Bauman, cada vez mais vejo menos pessoas ruborizando, se envergonhando por suas atitudes e menos ainda pela atitude de outrem, sim, porque há, ou havia, quem sentisse vergonha pelos outros, na falta do rubor deles.
Há quem diga que “nossa ética é outra agora”. Não. A ética é a mesma e a tendência é que seja universal e atemporal. Nossa moral sim, está mudando, ficando despudorada, desavergonhada, e se a ética tem alguma culpa no cartório é de não estar julgando a moral como deveria. Na negligência da ética, a moral se afunda na permissividade irresponsável.
Para que o pudor floresça precisa ser regado com respeito ao outro e a si, adubado com dignidade, podado com justiça e mantido à sombra de uma boa ética. Valores e princípios éticos-morais serão os frutos dessa árvore.
Uma sociedade que não ruboriza, robotiza os sentimentos das pessoas para consigo e com os outros, o preço é a desumanização, a coisificação do ser humano, o homem tornado um animal como todos os outros. Perdemos o que nos distingue dos macacos e dos leões. Quem não ruboriza, não se envergonha da própria estupidez, não se revolta ante injustiças, não se arrepende de más atitudes, não reconhece seus erros, não muda, não cresce como pessoa.
No documentário não falaram sobre o arrepiar. Acho pertinente. Os animais se arrepiam, Ato reflexo pelo sentimento de dor, raiva, sensação de frio. O ser humano também eriça os pelos por estes e por outros motivos que não o dos demais animais. Por medo, mas também por orgulho, diante do Hino Nacional ao hasteamento da Bandeira, por emoção, ao se deparar com a justiça prevalecendo sobre a injustiça, pelo despertar do amor em um beijo, por puro desejo.
Ruborizar e se arrepiar, portanto, pode entrar na singular lista do que nos difere dos outros animais. Sejamos humanos, nos importemos mais conosco e com os outros, nos emocionemos mais conosco e com os outros. Essa pode não ser a moral que temos, mas pode continuar sendo a ética que almejamos.

Por Cristian Menezes - 05/2022