quarta-feira, abril 8

O Poço Brasilis

Cena do filme O Poço (The Platform - 2019- Netflix - direção: Galder Gaztelu-Urrutia)


…então temos uma instituição prisional em um mundo distópico cujas celas são substituídas por níveis e em cada nível apenas dois apenados o dividem. Uma espécie de mesa desce pelo centro dos níveis trazendo, uma vez por dia, alimentos para todos os cativos. Mas não qualquer tipo de alimento, um esplendoroso banquete feito por mais esmerada cuisine et ses cuisiniers, impecavelmente limpa, higiênica e bem equipada. Detalhe: o cardápio é minuciosamente preparado com o prato que cada detento escolhe ao preencher uma ficha de entrada no Poço. O chef da esmerada cozinha é como um chefe deve ser: competente, exigente ao extremo e exageradamente detalhista, prepotente, narcisista, mal educado.
O problema é que, se cada um comesse apena o suficiente, o ideal para sua nutrição diária, a comida daria para todos, mas o que acontece não é bem isso, os prisioneiros dos primeiros níveis se fartam sem se importarem com os outros dos níveis inferiores. Como resultado, obviamente, de um certo nível para baixo a mesa chega vazia. Os detentos são trocados de nível aleatoriamente uma vez por mês. Ou seja, os que dão o azar de acordarem nos níveis mais baixos do Poço depois de um tempo sem nada para comer comem uns aos outros.
Pela tranquilidade e preocupação demasiada com o serviço, o chef aparenta nada saber, ou se importar com o que acontece abaixo dele. Assim como os cozinheiros e o resto dos funcionários do sistema. Os prisioneiros, diferentemente de uma prisão normal, podem ir parar lá por imposição por terem praticado algum crime ou por vontade própria. Ao serem admitidos no Poço, cada um pode levar um objeto e apenas esse objeto.
Pintado o cenário, muito se pode extrair das situações que se seguem na dogmática e angustiante película. Alguns falam da crítica aos sistemas capitalista e comunista; outros, sobre a condição humana; sobre o dilema filosófico entre o bem e o mal; sobre o problema epistemológico da ética e de sua práxis; sobre a natureza humana se hobbesiana ou rousseauniana; sobre o antagonismo do poder e da servidão; sobre a religiosidade ou falta dela; sobre um monte de coisas ou até mesmo sobre nada, “é só um filme de terror do tipo Jogos Mortais”.
Já que a interpretação é livre, então lá vai a minha: O Poço é um retrato nu e cru da nossa sociedade na atual situação de pandemia. Os primeiros níveis são as sacadas dos prédios luxuosos das grandes cidades, tem até uma certa semelhança com os níveis do filme espanhol. Quem está lá em cima tem comida à vontade, pois é só ligar ou acessar um aplicativo para que alguém entregue e ainda se sinta um “herói” por estar fazendo isso. Eles, os moradores, podem se dar ao luxo de ficar dias, semanas, meses…quem sabe nem voltar a trabalhar, eles podem, estão nos níveis mais altos. Longe deles consumirem apenas o essencial, consomem tudo, do bom e do melhor, todas as hortifrútis, toda a carne (item que já há algum tempo só eles consumiam mesmo), frutos do mar, silvestre, todo o enlatado, o empacotado, o embalado a vácuo...as máscaras e o álcool gel.
Abaixo dos níveis dos condomínios estão os níveis intermediários, sobrevivendo com as migalhas dos moradores dos níveis superiores. Não têm acesso a eles, mas deles dependem, de sua boa vontade em não defecar nas sobras depois de fartos e, por sorte, se verem impelidos ao altruísmo nem que seja só pra ficarem bem na self. São os porteiros, entregadores, trabalhadores em farmácias, hospitais, caminhoneiros…os tidos como “serviços essenciais”. Essenciais para que mesmo? Para que o sistema que alimenta e engorda os lá de cima não entre em colapso. Estão morrendo, mas não de fome, então tá bom. Peças uteis.
Abaixo de tudo isso, nos níveis abissais do sistema social, a massa que se empoleira nas favelas, nos ônibus, nos metrôs, que se sem pandemia já vivia mal, com ela estão à mingua. Estão morrendo da falta de alimento, da falta de medicamento, da falta de saúde básica, da falta de UTI, da falta da merenda da escola pública, de bala perdida, da falta de uma pedra de sabão para lavar as mãos…e do tal do vírus, também.
“Uffaaa!!!” grunhi um internauta na frente do laptop da maçãzinha no septuagésimo sexto andar. “Ainda bem que não tem os últimos níveis com gente comendo gente”. Tem sim, desavisado. É que daí de cima não dá para ver! O Poço Brasilis é fundo, mais fundo que O Poço. Eles estão pelos becos, pelas escadarias, debaixo das pontes, viadutos e ocas de papelão. Estão matando uns aos outros para roubar a quentinha, o corotinho, a pedra, o cobertor…só não estão se comendo, pelo menos não literalmente. Ainda. Mas já estão incinerando…
E o chef du cousine? La no Planalto Central, em sua cuisine et ses cuisiniers. Acima do primeiro nível, no nível zero, inatingível, inalterado. Dando ordens e gritando com seus subordinados, preocupado apenas com o cardápio, com a receita, com a apresentação, nem aí para quem vai comer dos pratos ou não. A preocupação dele? Com o cabelo na panna cotta, ou seja, com a imagem, com o que vão dizer os jornalistas hoje sobre o penteado dele. E ai daquele cozinheiro que ousar questioná-lo e dizer que o molho velouté está sem sal ou que o sous chef está passando mal, com dor na garganta e febre… “é só uma gripezinha. Volta pro trabalho, pô!!!”, berra.

Por Cristian Menezes – 04/20

2 comentários:

  1. Os desgarrados, musica de Mário Barberá, na Califórnia da cancao nativa, Já descrevia algo parecido. Já citava a loucura de um sistema desigual...

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