quinta-feira, julho 16

Arrependimento: um presente de grego


Presente de grego é uma referência ao último dos dez anos da famosa Guerra de Troia narrada no poema Íliada, de Homero, em que o rei espartano Menelau destacou grande exército, com grandes guerreiros, entre eles o semideus Aquiles e Ulisses, o rei de Ítaca, das ilhas gregas até Troia no intuito de resgatar sua esposa Helena “raptada” por Páris, irmão de Heitor, filhos de Príamo. Sem conseguir penetrar os muros de Troia, um estratagema foi arquitetado por Ulisses: todo o exército de Menelau se retirou deixando apenas um enorme cavalo feito com a madeira das embarcações como presente dos gregos aos troianos por “vencerem” a guerra pela desistência do adversário. O “Cavalo de Troia”, como ficou eternizado, estava recheado com os melhores guerreiros gregos, que aguardaram os troianos adormecerem depois de se embriagarem no afã da “festa da vitória” para sair de dentro do cavalo, abrir os portões e aniquilar toda a cidade, fazendo das mulheres e crianças escravos.

Dito isto, o arrependimento pode ser comparado a um presente de grego, um “Cavalo de Troia” dado à nossa consciência. Presente porque nos é dado, mas como o ardiloso mimo de Menelau, mais para ferir, trazer prejuízo que para alegrar. É o tipo de sentimento que ninguém gostaria de ter, e não o teria não fosse empurrado goela abaixo. É a dor por algo que já aconteceu, que já foi feito, portanto, irremediável. O arrependimento rompe os portões intransponíveis de nosso inconsciente e adentra a cidadela de nossa consciência para nos dizer o quão errado fomos, o quão injustos, o quão sediciosamente imorais podemos ter sido em algum momento e que, graças ao Cavalo de Troia, ecoará em nós para o resto de nossas vidas, lancinando nossas mentes, nossos corações ad infinitum, como, já que falamos em mitologia grega, o próprio Prometeu, acorrentado ao monte Cáucaso, condenado por Zeus a ter o fígado dilacerado todos os dias por uma águia e todos os dias regenerado para novamente ser rasgado.

O tamanho da tortura que pode nos causar nosso “presente de grego” é direta e diametralmente proporcional a dor impingida pelos nossos atos. Sofremos tanto o quanto fizemos sofrer e, às vezes, sofremos em dobro, pela dor que causamos ao outro e pela dor do arrependimento. E ainda há quem suscite uma verborrágica didática no arrependimento: o arrependimento vem para nos ensinar a não repetir os mesmos erros no futuro. Balela. Erramos de novo e novamente e o tal do “Cavalo de Troia” só cresce, passa de um pequeno Pônei a um imponente Shire. Podemos até aprender com nossos erros, mas didaticamente falando, o arrependimento está para o crescimento espiritual assim como a palmatória está para a educação tradicional: aprender pode até aprender, mas que dói, dói, e dói pra caramba. Nestes termos sou a favor de uma didática mais contemporânea, reflexiva, de ponderações.

Outra comparação que cabe aqui entre o presente dos gregos aos troianos e os cavalos de Troia que nos presenteamos ao longo de nossa existência é o final infeliz declamado por Homero. Lá, na Grécia do século XII ou XIII a.C., a guerra foi o crepúsculo de dois grandes heróis, Heitor, morto por Aquiles em vingança pela morte do primo Pátroclo, e o próprio Aquiles, abatido por uma flechada certeira disparada por Páris em seu calcanhar, único ponto vulnerável do semideus, cujos feitos foram cantados por poetas por séculos seguidos. Aqui, na nossa própria história, um único herói perde a vida, nós mesmos. O arrependimento por algo terrível que fizemos mata o herói, no sentido grego da palavra, o ser honrado, honesto, de altos padrões morais e éticos, o melhor de nós que poderíamos ter sido não tivéssemos errado tão patentemente. E o herói dentro de nós morre como o herói grego Aquiles, atingido em nosso ponto vulnerável, o nosso ponto mais frágil…o coração.

Por Cristian Menezes - 7/2020

quarta-feira, julho 8

Como o mundo muda para melhor?

       Imagem: filósofo italiano Nicolau Maquiavel, do Portal Grande Ponto
Certamente essa é uma questão que assombra a humanidade desde que se reconheceu como humanidade. Certamente também não existe uma fórmula secreta para isso. Mas a Filosofia traz pistas. Uma delas bem poderia ser uma função da ética que se já dita, não é tão conhecida. Os livros trazem, resumidamente, a ética como “um conjunto de valores que servem para orientar o homem no convívio com os seus em sociedade”. Vendo por esse angulo, a ética é flexível, uma vez que os valores, segundo o filósofo e sociólogo francês Edgar Morin, são complexos, ou seja, “todo valor tem no seu contrário um valor também”. Exemplificando, se a honestidade é um valor, a desonestidade também, afinal, qual casamento se sustentaria sendo os cônjuges cem por cento honestos um com o outro o tempo todo? “Esse vestido (que rodei o shopping o dia inteiro para comprar e custou mais do que poderia ter pago) está bom meu amor?”, pergunta a esposa, sorridente. “Está simplesmente horrível, meu bem!”, responde o marido. Lá se foi a harmonia do casal pela falta de uma desonestidadezinha que não faria mal a ninguém.
Mas e se a ética tivesse uma outra função, que não apenas a de servir como uma bandeira branca entre os homens para que possam conviver? E se por ética compreendamos preceitos não tão flexíveis assim e que, exatamente por sua inflexibilidade, tivessem o poder de mudar o mundo para melhor? Que tal imaginar o século XVIII com madames desfilando em luxuosas carruagens cercadas de escravos para lhes servir? Imagine as festas suntuosas em grandes mansões em que os escravos eram enfileirados e postos à amostra como peças integrantes da decoração da casa? E os leilões de venda de escravos, que, via de regra, se tornavam eventos sociais de grande magnitude, atraindo, entre outros, membros de destaque da sociedade laica e clerical. Não teria sido a ética de alguns que se revoltaram com a condição de humanos-escravos que iniciou todo o movimento abolicionista no mundo inteiro a ponto de essa indignação ecoar pelos séculos e fazer com que cidadãos ingleses de Bristol “afogassem” no rio a estátua do famoso escravocrata Edward Colston, agora, mais de 200 anos depois?
A ética inflexível, a reflexão que toma por base valores de convivência e os mantém incólumes, pode resultar na indignação, semente das grandes revoluções, que por sua vez têm a capacidade de mudar o mundo, quase sempre para melhor, pelo menos em teoria. A escravidão, o tratamento vil para com pessoas iguais, diferentes apenas na cor da pele, feriu a ética de pessoas preocupadas com os direitos do humano em geral, não apenas com os nascidos no privilégio da cútis alva. Os valores que servem de base para essa ética inflexível? Uma delas sem dúvida é a compaixão. Segundo o Dicionário Aurélio, “Sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de minorá-la; participação espiritual na infelicidade alheia que suscita um impulso altruísta de ternura para com o sofredor”. O contrário da compaixão? Indiferença, um valor também, claro, em algumas circunstâncias bem particulares, por exemplo, uma pessoa que tenha que cuidar de um parente com esquizofrenia em estágio avançado que o achincalha todas as manhãs por confundi-lo com outra pessoa. Veja que nesse caso específico, a indiferença chega ser uma dádiva. Porém, caso a escolha dos então futuros abolicionistas tivesse sido, como o da maioria à época, a indiferença, hoje ainda teríamos senzalas espalhadas por toda parte e pelourinhos içados nas praças para castigar aqueles que ousassem falar em liberdade ou em igualdade de direitos.
A questão aqui, portanto, é: eu aprendo muito quando flexibilizo, minimizo minha ética para adaptá-la, ou adaptar-me, a certas circunstâncias, geralmente imediatas. Porém, eu posso ensinar as pessoas à minha volta, o mundo quiçá, a refletir quando a mantenho inflexível diante daquilo que me causa indignação, daquilo que prevejo ser o melhor para a humanidade, seja em curto, médio ou a longo prazo. Não seria, afinal, uma ética intransigente a produzir cidadãos honestos e responsáveis, políticos incorruptíveis, empresários comprometidos com a sociedade?
Não são poucas as coisas que podemos vislumbrar seria melhor caso deixassem de existir. Também não são poucas as coisas que estão em processo de mudança, graças, em grande parte, à ética imutável, incorruptível de alguns corajosos, que aceitam a árdua tarefa de se tornarem personae non gratae em seus círculos familiares, de amizades ou até para toda a cidade ou país. Exemplos? As pessoas que lutam em prol do meio ambiente; pessoas que dedicam a vida para salvar animais em risco de extinção; pessoas que correm o mundo para lutar pelos direitos das mulheres a, apenas, aprender a ler ou sentir prazer. E todas essas mudanças em andamento estão sendo conduzidas por pessoas cuja ética não flexibilizou para o seu oposto, não se calou, não se escondeu.
Existe uma linha tênue em flexibilizar a própria ética e tornar-se hipócrita. Afinal, poderíamos dizer que existe mesmo uma ética, uma reflexão de valores em quem não se incomoda com nada, em quem em todo lugar se sente bem, em toda situação se vê confortável, naquele que serve uma ética a la carte ao bel prazer do “cliente”? Não é, pois, a manutenção de nossos princípios (éticos) que acabam por nos definir como pessoas?  
Mesmo no mérito do pensamento de Morin - que dizia que o homem deveria acrescentar um demens à sua autodesignação, ficando homo sapiens sapiens demens -, ou seja, racional, mas também um pouco descomedido, louco -, não podemos perder a noção de que nossas atitudes, nossas ações, nossas escolhas é que fundamentam o nosso devir. É, portanto, de nossa total e inteira responsabilidade o que nos tornamos e tornamos o mundo. E se o preço por isso for um pouco de incompreensão, isolamento…aquele olhar atravessado ao passar na rua ou mesmo aquele convite para uma festa que todo mundo recebeu, mas não chegou para você…paciência, acho que vale a pena pagar.

Por Cristian Menezes - 7/2020