terça-feira, setembro 22

O caso Tamayo e o niilismo ético na pós-modernidade

 

                                                   Ilustracão de Pawel Kuczynski

Mulher é presa por tráfico de drogas e envolvimento com prostituição. Esse tipo de notícia é, infelizmente, até bastante comum em nosso País. Mas por que, então, nesse momento e uma mulher em especial tem incomodado tanta gente? Explicar essa comoção de parte da sociedade com o caso da “modelo” Flávia Tamayo é mexer em águas profundas e lamacentas de nossa sociedade pós-moderna, mas vamos lá. Flávia foi presa em julho, em um hotel no Espírito Santo, suspeita de fazer parte de uma organização criminosa de garotas de programa de luxo que atuavam no tráfico de drogas. Mas até aí ainda continua um caso corriqueiro que chega aos milhares nas delegacias Brasil afora todos os dias, não fosse, e aí começa cair a cortina, por um detalhe: garotas de programa “DE LUXO”. Esse “DE ‘LUXO” é que faz toda a diferença. Flávia Tamayo foi, nada mais nada menos, que capa da Playboy, umas das revistas, se não a revista, masculina mais aclamada em todo o mundo. No Brasil, a norte-americana Playboy, distribuída pela Editora Abril até há alguns anos, despiu e fotografou ícones de popularidade tupiniquim, celebridades, socialites…que acabaram virando símbolos sexuais, objeto de desejo de onze em cada dez compradores da revista. Entre as 451 capas brasileira figuraram, por exemplo, Luma de Oliveira, Betty Faria, Luana Piovani, Vera Fischer, Xuxa Meneguel…e a Flávia Tamayo. O que elas têm em comum? A Beleza estonteante. O que elas não têm em comum? A maioria, claro não todas, das mulheres capas da Playboy se deram bem na vida. Ou casaram bem, ou se tornaram apresentadoras de TV com salários de seis dígitos, ou viraram empresárias e vivem confortavelmente em algum paraíso tropical…mas a Flávia não. A Flávia foi transferida do presídio de Cariacica, no Espírito Santo, para a Capital Federal, onde recebeu habeas corpus e passará a usar tornozeleira eletrônica até o fim do processo.

Ainda está lamacento? Pois bem. A questão aqui é que a sociedade costuma julgar as pessoas pela aparência, pelo status social, pelo cargo que ocupa. Aparência é tudo e nunca foi tão tudo quanto agora. Quando se vê uma mulher bonita, linda, capa de revista, costuma-se agregar a ela caráter, um caráter bom que pode não estar, necessariamente, com ela, fazer parte dela. Beleza estética é beleza estética e só. Nasce-se com ela, ou, agora, adquire-se, implanta-se. Já o caráter é outra coisa. Caráter, segundo alguns dicionários, tem a ver com a caracterização do próprio sujeito, índole, temperamento, personalidade, formação moral, características que podem ser boas ou más, mas que distinguem uma pessoa, um povo…popularmente quando falamos de caráter estamos nos referindo a características positivas, valores morais. Talvez por isso que nas notícias vinculadas em mídia nacional o nome Flávia vem quase sempre acompanhado de comentários do tipo “mulher que desperta desejos em homens da alta sociedade” ou por insistentemente ser tratada como modelo, assim, sem aspas. Teria isso corroborado para a concessão do habeas corpus diferentemente de tantas outras de, digamos, menor valor estético, que são flagradas com porções de droga nas genitálias tentando entrar nos presídios e por lá mesmo são trancafiadas e esquecidas?

O caso Flávia Tamayo lembra muito outros dois que tiveram grande repercussão pelo mesmo motivo, o da jovem Suzane von Richthofen, aquela loirinha, linda, educada…que matou os pais. É como se a sociedade se recusasse a aceitar que uma mulher branca, de olhos claros, cabelos perfeitos, corpo curvilíneo…pudesse ser assassina. Também lembra o caso do assassinato da Daniela Perez, filha da Gloria Perez, pelo moreno alto, bonito e sensual Guilherme de Pádua. Ninguém queria acreditar que foi ele quem matou a atriz…mas foi.

Em uma sociedade que está beirando o niilismo ético, é como se as pessoas quisessem desesperadamente ver no “melhor” que a sociedade pode produzir a boia salva vidas de valores perdidos onde possam se agarrar para não se afogar no mar de degeneração moral. O problema é que pessoas bonitas, com traços simétricos, brancas, altas, loiras, magras, com olhos azuis ou verdes não são, obrigatoriamente, sinônimos de pudor, honestidade, afabilidade, respeito, sinceridade, responsabilidade, lealdade…assim como pessoas feias, com traços assimétricos, negras, baixas, cabelos encaracolados, gordas, olhos castanhos não são sinônimos de despudor, desonestidade, desrespeito, falsidade…tudo é estereótipo criado pela mesma sociedade que agora luta para respirar em meio a uma poluição ética caótica criada por ela mesma. Tão errado quanto, é pensar que o melhor da sociedade só pode estar nos condomínios luxuosos, nos edifícios suntuosos, dirigindo carros caros, nas universidades particulares, nos clubes privados…o melhor da sociedade pode estar nas favelas, nas meias-águas, andando de bicicleta, nas escolas públicas, nos piscinões…o melhor da sociedade pode estar em qualquer lugar ou em lugar nenhum.

Resumindo, o incomodo causado pela prisão da Flávia Tamayo não tem nada a ver com a Flávia Tamayo, mas com a sociedade que esperava mais da Flávia Tamayo do que realmente Flávia Tamayo é. O problema é a imagem positiva que a sociedade esperava da Flávia Tamayo como reflexo dela mesma, ou do melhor que ela poderia ser, uma espécie de arquétipo do bem coletivo projetado no individual para dar sentido ao coletivo. É o mesmo pré-julgamento que a sociedade faz das minorias, do negro, do pobre, do gay, do refugiado, do deficiente…só que ao contrário, uma espécie de discriminação às avessas. A justiça da sociedade pós-moderna não é cega, pelo contrário, enxerga demais, vê o que não existe, traz consigo um pré-conceito de um cidadão perfeito e nele a beleza estética além de moldada na argila dos dez por cento mais privilegiados da população com todos os seus traços étnicos e culturais ainda é um sujeito politicamente correto.

E quem é realmente a bela Flávia Tamayo nessas alturas do campeonato? Bom se quiser conhece-la de verdade não é nas páginas coloridas de papel brilhante e caro assinadas por J.R. Duran, mas em sites especializados em pornografia com a sugestiva alcunha de Pâmela Pantera.


Por Cristian Menezes - 9/2020

terça-feira, setembro 8

Somos Processos


O universo é processo. O mundo é processo. Somos processos. Estar em processo, ser processo significa não acabado, por acabar. E talvez nunca acabe. Estar em processo é tudo que se pode ser. O universo é, segundo cientistas, um processo em expansão. O mundo é um processo de reorganização constante. E nós? que tipo de processo somos? Para variar, somos bem mais complexos, ou não. O fato é que cada um de nós tem o seu próprio processo ou processos. De expansão, de retração; de reorganização, de desorganização; de mudança, de constância; de cura, de doença; de liberdade, de escravidão; de sair do poço, de afundar no poço…e isso não tem fim. 

Perguntaram certa vez ao filósofo, escritor, orador considerado ser de luz para os indianos, Jidu Krishnamurti quantas religiões existiam no mundo e ele respondeu: existem tantas religiões quanto existem pessoas. Ou seja, cada um tem sua própria religião. Mesmo em uma igreja, um templo, uma tenda…as pessoas que ali estão compartilham, compactuam de partes daquela religião, mas não de tudo e assim cada um tem, na verdade, sua própria religião, suas próprias crenças que diferem das outras. E a religião também faz parte dos processos humanos, pequena parte para uns, grande parte para outros, mas apenas uma parte do todo.

Tenho conhecido muita gente diferente nos últimos meses. Vejo-me dividindo, compactuando de parte do processo deles, mas não é totalmente meu processo. Tenho meu próprio processo. E isso é de extrema importância. Ter consciência do seu próprio processo para não “embarcar” no processo alheio pensando ser o seu. Nunca será. Vejo isso como se fosse uma procissão de navegantes. Pequenas, medias e grandes embarcações saindo de um único porto em uma mesma direção. Aos poucos algumas embarcações se juntam a outras por afinidades, seja por amizade, parentesco com os outros navegantes ou mesmo apenas pela cor do barco, pelos enfeites que utilizaram para orna-los…não importa. Ficam próximos por um tempo, uma parte do percurso, mas aos poucos, ou às vezes abruptamente, se afastam uns dos outros. Alguns observam esse afastar, esse dispersar, outros sequer tomam conhecimento, quando veem já estão sós no meio ou à margem do rio.

Quando se tem consciência de seu próprio processo, consegue escolher o momento certo para dispersar e ficar observando cada um seguir seu próprio caminho, sua procissão, seu processo. Quando não, é tomado sem querer pela angustia de estar só. E não se espante com a palavra, porque se cada um tem seu próprio processo, é claro que estamos sós nesse rio chamado existência.

Observei que às vezes você se apega, se aproxima de alguém, de um dos barcos e o desejo é de ficar perto, seguir juntos por mais tempo. Mas nem sempre é possível. Vai depender de o quanto os processos estão em intersecção, isso mesmo, aquele termo da Matemática, mais especificamente em Teoria dos Conjuntos, que quer dizer um conjunto de elementos que, simultaneamente, pertence a dois ou mais conjuntos. Quando a intersecção acaba, e isso pode ser em horas, dias, semanas, meses, anos, décadas…acabou a possibilidade de proximidade e cada um precisa seguir seu caminho, seu processo.

Outa coisa que vi nisso tudo é que tem gente que tem mania de achar seu processo melhor que o dos outros ou que o seu (processo) está em um nível acima. Quando se dispersa e passa a observar os outros barcos se distanciando costuma ficar tentando adivinhar aonde a rota que o outro barco tomou vai leva-lo e julga estar aquele barco tomando o caminho certo ou o errado, mais sinuoso, mais perigoso, menos indicado…ledo engano. Não existe rota certa ou errada, processo certo ou errado, só rota, só processo. E nada mais. Aqui cabe um trecho da música do mestre Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é…”. Quando a reciprocidade, os gostos em comum, o prazer do estar junto acontece, quando "rola a química", a vontade que dá é de tornar a se aproximar daquele barco e gritar: “Ei, essa rota aí é fria. Volta, vai por ali, vira aqui, segue comigo que te ajudo a navegar, já passei por esse trecho do rio e sei o caminho das pedras!!!”. Sinceramente? É perda de tempo. É como se cada um de nós tivesse a própria bússola, o próprio GPS que só obedece, só reconhece seu próprio Norte. Faz parte do processo.

Raramente acontece. Já vi acontecer. Não comigo, não agora. Mas já observei um barquinho se aproximando do outro e como quem não quer nada, lenta e silenciosamente encosta. E tão sorrateiramente quanto se aproximou leva de pouquinho em pouquinho o outro barquinho para uma rota mais tranquila, mais segura. E os dois barquinhos conseguem seguir juntos rio abaixo, numa rota só deles, com o pôr do sol às costas…a essa aproximação suave os outros navegantes do “rio da vida” como eu chamam de AMOR.

Por Cristian Menezes - 9/2020