Sobre homens e máquinas
“Mulher é morta a pauladas em
praça pública pela população acusada de bruxaria e rapto de crianças para
rituais de magia negra”. Não, não é um trecho de nenhuma Acta Diurnália do século II a.C. narrando, em tabuas afixadas nos
muros de Roma, os principais acontecimentos do Império Romano. Não. Essa triste
notícia é de agora, pleno século XXI, numa das maiores cidades do mundo
moderno, São Paulo/Brasil. E ao invés de apenas fazer parte de um rol de
parágrafos em escritas cuneiformes em um pedaço de madeira, foi causada, partiu
do que se tem de mais moderno em termos de tecnologia e comunicação: o
computador e as famigeradas, e totalmente livres, redes sociais.
Pensei em iniciar este artigo com
metáforas que lembrassem a passagem dos irmãos Caim e Abel, “o primeiro
homicídio” de que se tem notícia na história escrita da humanidade. Mas depois
de refletir um pouco percebi que não caberia, visto que o ato motor do
assassinato bíblico teria sido a cólera causada pela inveja. Argumento frágil
para se tirar a vida de uma pessoa, ainda mais quando a pessoa em questão é o
próprio irmão. Torpe e fútil teriam sido as motivações para o linchamento da
mãe de duas filhas no litoral paulista, deveras mais frágil que a motivação de
Caim.
“Só mais um”, diriam alguns
desavisados. Ledo engano. Primeiro que o que muitos chamam de linchamento, na
verdade, não passa de tentativa. O linchamento deve, invariavelmente, culminar
com a morte da vítima. Tentativas até houve, mas linchamento mesmo é o
primeiro, pelo menos aqui, pelo menos tão cruelmente e cruamente documentado em
vídeo.
E não. Não é um crime como
qualquer outro. Não é um incêndio de ônibus praticado por vândalos de plantão,
não é troca de tiros entre bandidos e a polícia numa favela. O linchamento
parte da população. É o vizinho, a dona de casa, o estudante...que sob o véu da
impunidade, do anonimato e da revolta ignorante cometem absurdos. Não, não é
“só mais um crime”.
Questões semânticas à parte e
longe de querer amenizar a barbárie que é um punhado de “cidadãos” sair de suas
casas, suas rotinas, suas vidas para “lavar a honra” da sociedade com as
próprias mãos – quem eles pensam que são? - o preocupante aqui, e aí, e só aí,
cabe uma pequena comparação com o primus
hominis excidium, do Gênesis, é a profunda e atordoante indiferença pela
vida, é a temerosa proximidade com o que há de mais incognoscível e lascivo na
condição humana que envolve os dois atos. Com um agravante, Caim estava no
início do que hoje chamamos de sociedade. Já o que vivemos é o futuro de todos
os tempos passados, é o amanhã tão sonhado por Asimov (o Isaac) e
perturbadoramente vislumbrado em pesadelos psicodélicos por Huxley (o Aldous –
Admirável Mundo Novo) e por Burgess (o Anthony – Laranja Mecânica).
O futuro chegou e todas as
máquinas, todo o colorido das LEDs, a inteligência dos nerds, a presteza dos
softwares a rapidez das nets só tem servido, ou pacificamente assistido, via
webcam, à desumanização do homem. De que adianta tanta tecnologia, ciência,
saberes se o mais importante e mais simples e objetivo de tudo isso, que é o
convívio pacifico do homem com os seus em sociedade, não está sendo alcançado,
aliás, está se perdendo o pouco que se tinha alcançado?
Somos seres híbridos agora, parte
homem parte máquina, e a parte máquina, sem sentimento, sem pudor, sem ética,
sem compaixão está suplantando a parte homo.
Sobre essas “melhorias” advindas
com o mundo high-tech, encerro este artigo parafraseando um dos personagens dos
contos de K. Dick (o Philip), escritos no final do século passado, "Com
tantas máquinas, computadores e pílulas para sentir, vejo que a humanidade se
tornou um ato de se afastar de tudo que é humano".
Por: Professor Cristian Menezes

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