quinta-feira, julho 31

ARTIGO

Nem os professores, nem os alunos: o sistema



Quando se pensa em apontar culpados pelo caos que aflige a educação brasileira sempre se ouve frases prontas do tipo: “a culpa não é dos professores, que ganham mal, dão o sangue em salas superlotadas...” ou “a culpa não é dos alunos, que sequer sabem para quê serve ir às aulas todos dos dias...” ou ainda “a culpa de tudo isso é do sistema, que ganha com a ignorância, afinal, povo burro é povo fácil de enganar...”. “Mas afinal quem é esse tal de Sistema para mim poder ir lá e falar umas verdades para ele?!”, diria o mais desavisado.
Pois é, também defendo, veementemente, que o problema da educação no Brasil não está no professor, não está no aluno, não está na instituição escola, mas sim no sistema, e, para satisfazer a curiosidade de quem procura o tal “Sistema”, descortiná-lo-emos.
Grosso modo, o sistema é tudo que sustenta e é sustentado pelo tipo de política econômica vigente, o tipo de regime impregnado no nosso dia-a-dia, na nossa cultura e até no nosso jeito de ser. O sistema não é quem, mas o quê, como, quando e onde. Está em tudo, mas não pode ser visto a olho nu.
A melhor forma de identificar “quem” no sistema, é acompanhar o que se desencadeia a partir e com ele e chegar àquele que ganha, que lucra, que se locupleta com o sistema. Se existe uma pessoa física (ou jurídica) culpada pelo sistema é esse o CPF (ou o CNPJ) dele.
Já pensou, por exemplo, o que seria do proprietário de uma rede de postos de combustíveis multimilionário se os adolescentes que trabalham de frentistas - os “linha de frente” contra os assaltantes e que ainda têm os produtos dos roubos aparecendo em seus holerites como adiantamentos -, se estes aprendessem tudo que é transmitido pelos professores em sala de aula, se fossem além e ainda pesquisassem por conta própria sobre outros assuntos, se lessem livros, se chegassem a uma universidade de boa qualidade, se fizessem uma pós-graduação, um mestrado, um doutorado...e se esses jovens perceberem que eles não precisam, necessariamente, ser frentistas, mas que podem chegar a ser o gerente do posto, o dono do posto, o dono da rede de postos, o proprietário da refinaria de petróleo...será que eles ainda assim iriam se prontificar a ficar segurando uma bomba de combustível, passando rodo no chão e jogando água no para-brisa de carro? Não. E sabe o que aconteceria se todos agissem da mesma forma, se erguessem a cabeça e começassem a não aceitar serem menosprezados, subvalorizados, idiotizados? O sistema quebraria.
Seguindo o caminho inverso, se o jovem se resigna com sua “condição”, pior, se chega a se sentir feliz em ser frentista, em estar empregado “no País do desemprego”, porque “todo trabalho é digno”, é aquele que não chega no horário na escola porque “larga” o serviço tarde, não presta atenção na aula porque está muito cansado, não participa das atividades, não faz tarefa, não lê...enfim, o aluno “dá nada”, este desmotiva o professor, desestrutura a escola, força uma falsa política educacional que coleciona números para sustentar o status quo no cenário econômico mundial, mas vira chacota para gringo na Copa do Mundo empunhando cartazes do tipo “Vamu pro équiça”.
Com aluno e professor desmotivados, a gestão da escola entra em crise. A escola vira um gueto, onde marginais se misturam às pessoas de bem, há comércio de drogas, prostituição e vandalismo da coisa pública. Uma escola-gueto hoje, duas amanhã...e a sociedade, em um médio espaço de tempo, está toda comprometida. Alunos de baixo rendimento tendem a ser profissionais medíocres, adultos irresponsáveis, pais de filhos de baixo rendimento...é um ciclo vicioso que fortalece o sistema.
Por que fortalece o sistema? Porque sociedade problemática gera esperança, palavrinha, aliás, odiosa, que significa um monte de gente esperando que alguém faça algo por ela que não pode, ou não quer fazer por si. Surgem os políticos com a “cura”. E quem sustenta o político e suas campanhas milionárias? Os donos dos postos de combustíveis, ou seja, o sistema.
O resultado desse esquema doentio não é só a violência, a pobreza, a fome, a doença...tem coisa pior. O mais cruel no sistema é que ele tira do homem, do jovem, da criança a capacidade de sonhar.
Os adultos de hoje não têm grandes sonhos, não pensam em descobrir novos mundos, salvar o planeta, construir uma máquina do tempo para voltar ao passado e fazer melhor...nossos heróis não voam, não têm superpoderes, não vestem capa vermelha por debaixo do terno, aliás, sequer usam ternos...são trabalhadores, empregados, frentistas...o sonho não passa do portão da cerca branca, com uma casinha azul no meio e cravos ao redor para o totó “regá-las”. Se a noção de sucesso é pífia, o sinônimo de felicidade para quem sonha pequeno só pode ser ínfimo: contar os dias da semana à espera do sábado para tomar umas “brejas” com os amigos, “queimar uma carninha” e mentir um pouco “pra aliviar o stress”.
Os filhos, por natureza, não sonham muito mais alto que os pais, já que o sonho possível de todo jovem é ser o que os pais são ou ser melhores do que os pais foram. Só que melhor do que um pouco é só pouco mais que pouco.
“No porão de todo empresário, funcionário público de carrreira...cujo filho sonha ser roqueiro e viajar o mundo com uma banda, tem sempre uma guitarra empoeirada”, disse um psicólogo. E agora pergunto: e nós, o que temos no nosso porão da vida para inspirar nossos filhos?
Ah! Só uma ressalva. Nada contra frentistas, apenas lembrar que nos países ditos civilizados é uma profissão extinta há muito tempo. Nos países subdesenvolvidos resiste como um símbolo de poder, subserviência e autopreservação, afinal, quem arrisca abastecer o Corolla em um posto de combustível na Zona Leste do Rio de Janeiro depois das 10? O dono do posto é que não é. 

quinta-feira, maio 8

ARTIGO

Sobre homens e máquinas



“Mulher é morta a pauladas em praça pública pela população acusada de bruxaria e rapto de crianças para rituais de magia negra”. Não, não é um trecho de nenhuma Acta Diurnália do século II a.C. narrando, em tabuas afixadas nos muros de Roma, os principais acontecimentos do Império Romano. Não. Essa triste notícia é de agora, pleno século XXI, numa das maiores cidades do mundo moderno, São Paulo/Brasil. E ao invés de apenas fazer parte de um rol de parágrafos em escritas cuneiformes em um pedaço de madeira, foi causada, partiu do que se tem de mais moderno em termos de tecnologia e comunicação: o computador e as famigeradas, e totalmente livres, redes sociais.
Pensei em iniciar este artigo com metáforas que lembrassem a passagem dos irmãos Caim e Abel, “o primeiro homicídio” de que se tem notícia na história escrita da humanidade. Mas depois de refletir um pouco percebi que não caberia, visto que o ato motor do assassinato bíblico teria sido a cólera causada pela inveja. Argumento frágil para se tirar a vida de uma pessoa, ainda mais quando a pessoa em questão é o próprio irmão. Torpe e fútil teriam sido as motivações para o linchamento da mãe de duas filhas no litoral paulista, deveras mais frágil que a motivação de Caim.
“Só mais um”, diriam alguns desavisados. Ledo engano. Primeiro que o que muitos chamam de linchamento, na verdade, não passa de tentativa. O linchamento deve, invariavelmente, culminar com a morte da vítima. Tentativas até houve, mas linchamento mesmo é o primeiro, pelo menos aqui, pelo menos tão cruelmente e cruamente documentado em vídeo.
E não. Não é um crime como qualquer outro. Não é um incêndio de ônibus praticado por vândalos de plantão, não é troca de tiros entre bandidos e a polícia numa favela. O linchamento parte da população. É o vizinho, a dona de casa, o estudante...que sob o véu da impunidade, do anonimato e da revolta ignorante cometem absurdos. Não, não é “só mais um crime”.
Questões semânticas à parte e longe de querer amenizar a barbárie que é um punhado de “cidadãos” sair de suas casas, suas rotinas, suas vidas para “lavar a honra” da sociedade com as próprias mãos – quem eles pensam que são? - o preocupante aqui, e aí, e só aí, cabe uma pequena comparação com o primus hominis excidium, do Gênesis, é a profunda e atordoante indiferença pela vida, é a temerosa proximidade com o que há de mais incognoscível e lascivo na condição humana que envolve os dois atos. Com um agravante, Caim estava no início do que hoje chamamos de sociedade. Já o que vivemos é o futuro de todos os tempos passados, é o amanhã tão sonhado por Asimov (o Isaac) e perturbadoramente vislumbrado em pesadelos psicodélicos por Huxley (o Aldous – Admirável Mundo Novo) e por Burgess (o Anthony – Laranja Mecânica).
O futuro chegou e todas as máquinas, todo o colorido das LEDs, a inteligência dos nerds, a presteza dos softwares a rapidez das nets só tem servido, ou pacificamente assistido, via webcam, à desumanização do homem. De que adianta tanta tecnologia, ciência, saberes se o mais importante e mais simples e objetivo de tudo isso, que é o convívio pacifico do homem com os seus em sociedade, não está sendo alcançado, aliás, está se perdendo o pouco que se tinha alcançado?
Somos seres híbridos agora, parte homem parte máquina, e a parte máquina, sem sentimento, sem pudor, sem ética, sem compaixão está suplantando a parte homo.
Sobre essas “melhorias” advindas com o mundo high-tech, encerro este artigo parafraseando um dos personagens dos contos de K. Dick (o Philip), escritos no final do século passado, "Com tantas máquinas, computadores e pílulas para sentir, vejo que a humanidade se tornou um ato de se afastar de tudo que é humano".

Por: Professor Cristian Menezes