sexta-feira, outubro 2

Sobre o falar e ouvir

 

                            Obra do desenhista e pintor polonês Pawel Kuczynski

“Se um dia você tiver alguém, tente descobrir o que seus amigos, seus pais, sua mãe especialmente, o que eles realmente pensam da pessoa com quem você pretende passar a vida. Porque não vão falar, você vai ter que extrair essa informação deles. Mais nesse assunto especificamente do que tudo eles têm perspectivas, eles podem olhar de fora e absorver tudo, enxergar o relacionamento como ele realmente é. E se sentirem que está fazendo besteira, faça de tudo para te contarem ao invés de serem educadinhos, senão você vai acabar como eu, sentada num jardim em algum lugar com uma dessas pessoas próximas a você falando “eu te avisei” por horas e horas sem perceber que até então ela nunca tinha dito nada”. O texto é um trecho do diálogo entre uma senhora suspeita de matar os amantes do marido e uma policial na série europeia Criminal – Reino Unido. 

Houve um tempo em que as pessoas próximas, os amigos, os pais falavam sobre o mundo, sobre suas experiências, sobre relacionamentos, opinavam e as pessoas escutavam e até tentavam, na medida do possível, agir de acordo, mas esse tempo passou. Depois, os amigos e os pais falavam e as pessoas apenas fingiam que escutavam, e esse tempo também passou. Com o passar dos anos, as pessoas simplesmente não davam mais ouvidos. E ai chegou o tempo em que os amigos, os pais passaram apenas a observar, sem falar, sem opinar mais nada. E chegou o agora, em que os amigos e os pais simplesmente não ouvem e não falam nada, ninguém tá nem aí pra paçoca. E ninguém está tentando ser “educadinho” não. Não estão querendo ser nada.

Ninguém observa mais ninguém além de si mesmo, ninguém mais opina sobre nada da vida de quem ama. Tem gente que diz que esse é o melhor momento, o momento ideal da história em que cada um só cuida de si mesmo e ninguém “perde tempo” se preocupando com a vida do outro. Todos viraram aqueles três macaquinhos que um tampa o ouvido do outro, que tampa a boca do outro que está com as mãos nos olhos. O politicamente correto chamando inanição social de respeito mútuo.

No passado, quando um amigo, um parente observava que a pessoa iria dar um passo errado se via na obrigação de alertar e a pessoa em questão se via no dever de ouvir. O que hoje chamam de se intrometer na vida alheia, parecia o certo a fazer. É como se uma pessoa fosse cruzar a rua sem olhar para o lado e uma outra pessoa que estava observando, ao perceber que o atropelamento seria inevitável, grita e alerta o desavisado, que ouve e depois agradece por ter lhe salvo a vida. Mas o que mudou tanto de uns anos para cá? O carro que cruza as ruas em alta velocidade deixou de ser um perigo em potencial? Não, creio que não. A pessoa que cruza a rua displicentemente deixou de estar em perigo ao fazê-lo? Não, continuamos a ser um perigo para nós mesmo quando não temos a visão geral do momento. Aquele que observa deixou de sentir compaixão pelo outro, de querer ajudar, de ter vontade de impedir que algo de ruim aconteça aos que amam? Não, quero crer que não, isso seria o mesmo que afirmar que nos distanciamos tanto de nossa humanidade que não nos reconhecemos mais como humanos.

Então o que está acontecendo com o falar e o ouvir entre pessoas que se amam, que se respeitam e que querem o melhor para o outro? Ruído. Ruído demais. Nada atrapalha mais a comunicação entre as pessoas que o ruído. E sobre ruído podemos dizer que vivemos hoje uma verdadeira Babel de vozes, ideias, ideologias, conceitos, visões, previsões…

Li ou ouvi, o ruído não me permite afirmar, uma frase interessante sobre relacionamento em crise. “Os amantes ouvem com o coração. Quando duas pessoas que se amam não falam mais um com o outro, mas gritam, significa que seus corações estão tão distantes que mal podem se ouvir”. Ruídos. Ruído da insatisfação, frustração, rotina, descuido, correria, incompreensão…ruídos.

Por que não ouvimos mais aqueles que nos amam e que apenas querem nos ajudar? Ruídos. Ruído do medo da desaprovação, descobrir a razão pela qual nos importamos tanto com o que pensam sobre nós, constatar a nossa dependência dos outros a ponto de não conseguirmos fazer diferente, a impotência da razão sobre os desejos, a falta de amor próprio, ter que ouvir, depois de tudo, o “eu te avisei” molestando os ouvidos como um entoar de feitiços em um ritual satânico…ruídos.

E por que aqueles que nos amam não falam mais? Ruídos. Ruído de parecerem prepotentes, medo de afastar os que amam por causa dos ruídos deles, o famigerado choque de gerações, receio de expor que sabem muito do ontem, talvez pouco do hoje e praticamente nada do amanhã, pavor de serem abandonados num canto qualquer como uma relíquia daquelas que todo mundo tem uma em casa, não consegue se livrar pois tem um valor, mas que ninguém sabe exatamente qual é…ruídos.

 

Por Cristian Menezes – 9/2020