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| Obra do desenhista e pintor polonês Pawel Kuczynski |
“Se um dia você tiver alguém, tente descobrir o que seus amigos, seus
pais, sua mãe especialmente, o que eles realmente pensam da pessoa com quem
você pretende passar a vida. Porque não vão falar, você vai ter que extrair
essa informação deles. Mais nesse assunto especificamente do que tudo eles têm
perspectivas, eles podem olhar de fora e absorver tudo, enxergar o
relacionamento como ele realmente é. E se sentirem que está fazendo besteira,
faça de tudo para te contarem ao invés de serem educadinhos, senão você vai
acabar como eu, sentada num jardim em algum lugar com uma dessas pessoas
próximas a você falando “eu te avisei” por horas e horas sem perceber que até
então ela nunca tinha dito nada”. O texto é um trecho do diálogo entre uma
senhora suspeita de matar os amantes do marido e uma policial na série europeia
Criminal – Reino Unido.
Houve um tempo em que as pessoas próximas, os amigos, os pais falavam
sobre o mundo, sobre suas experiências, sobre relacionamentos, opinavam e as
pessoas escutavam e até tentavam, na medida do possível, agir de acordo, mas
esse tempo passou. Depois, os amigos e os pais falavam e as pessoas apenas fingiam
que escutavam, e esse tempo também passou. Com o passar dos anos, as pessoas
simplesmente não davam mais ouvidos. E ai chegou o tempo em que os amigos, os
pais passaram apenas a observar, sem falar, sem opinar mais nada. E chegou o
agora, em que os amigos e os pais simplesmente não ouvem e não falam nada,
ninguém tá nem aí pra paçoca. E ninguém está tentando ser “educadinho” não. Não
estão querendo ser nada.
Ninguém observa mais ninguém além de si mesmo, ninguém mais opina
sobre nada da vida de quem ama. Tem gente que diz que esse é o melhor momento,
o momento ideal da história em que cada um só cuida de si mesmo e ninguém “perde
tempo” se preocupando com a vida do outro. Todos viraram aqueles três macaquinhos
que um tampa o ouvido do outro, que tampa a boca do outro que está com as mãos
nos olhos. O politicamente correto chamando inanição social de respeito mútuo.
No passado, quando um amigo, um parente observava que a pessoa iria
dar um passo errado se via na obrigação de alertar e a pessoa em questão se via
no dever de ouvir. O que hoje chamam de se intrometer na vida alheia, parecia o
certo a fazer. É como se uma pessoa fosse cruzar a rua sem olhar para o lado e
uma outra pessoa que estava observando, ao perceber que o atropelamento seria
inevitável, grita e alerta o desavisado, que ouve e depois agradece por ter lhe
salvo a vida. Mas o que mudou tanto de uns anos para cá? O carro que cruza as
ruas em alta velocidade deixou de ser um perigo em potencial? Não, creio que
não. A pessoa que cruza a rua displicentemente deixou de estar em perigo ao
fazê-lo? Não, continuamos a ser um perigo para nós mesmo quando não temos a
visão geral do momento. Aquele que observa deixou de sentir compaixão pelo
outro, de querer ajudar, de ter vontade de impedir que algo de ruim aconteça aos
que amam? Não, quero crer que não, isso seria o mesmo que afirmar que nos
distanciamos tanto de nossa humanidade que não nos reconhecemos mais como
humanos.
Então o que está acontecendo com o falar e o ouvir entre pessoas que
se amam, que se respeitam e que querem o melhor para o outro? Ruído. Ruído demais.
Nada atrapalha mais a comunicação entre as pessoas que o ruído. E sobre ruído
podemos dizer que vivemos hoje uma verdadeira Babel de vozes, ideias,
ideologias, conceitos, visões, previsões…
Li ou ouvi, o ruído não me permite afirmar, uma frase interessante
sobre relacionamento em crise. “Os amantes ouvem com o coração. Quando duas pessoas
que se amam não falam mais um com o outro, mas gritam, significa que seus
corações estão tão distantes que mal podem se ouvir”. Ruídos. Ruído da
insatisfação, frustração, rotina, descuido, correria, incompreensão…ruídos.
Por que não ouvimos mais aqueles que nos amam e que apenas querem nos
ajudar? Ruídos. Ruído do medo da desaprovação, descobrir a razão pela qual nos
importamos tanto com o que pensam sobre nós, constatar a nossa dependência dos
outros a ponto de não conseguirmos fazer diferente, a impotência da razão sobre
os desejos, a falta de amor próprio, ter que ouvir, depois de tudo, o “eu te
avisei” molestando os ouvidos como um entoar de feitiços em um ritual satânico…ruídos.
E por que aqueles que nos amam não falam mais? Ruídos. Ruído de
parecerem prepotentes, medo de afastar os que amam por causa dos ruídos deles,
o famigerado choque de gerações, receio de expor que sabem muito do ontem,
talvez pouco do hoje e praticamente nada do amanhã, pavor de serem abandonados
num canto qualquer como uma relíquia daquelas que todo mundo tem uma em casa,
não consegue se livrar pois tem um valor, mas que ninguém sabe exatamente qual
é…ruídos.
Por Cristian Menezes –
9/2020
