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| A arte de Pawel Kuczynski |
Andei
refletindo muito sobre duas frases, uma a vejo estampada em uma porta quase em
frente à minha sala de trabalho todos os dias e outra já tinha ouvido várias
vezes, mas nunca tinha me chamado muito a atenção, creio que o problema
semântico, que EU vejo nelas, talvez me tenha despertado interesse. A primeira,
“Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”, dita por Cora
Coralina e repercutida enfaticamente entre pedagogos e profissionais da
Educação. A outra é secular, é um trecho da oração de São Francisco, “…É dando
que se recebe…”, claramente inspirada na passagem bíblica “Dai, e vos será
dado…” (Lucas 6. 38). Sobre a primeira frase, vejo uma discrepância (crono)lógica
na segunda parte, “…e aprende o que ensina”. Como assim? Não seria a
“confissão” explícita de que “ensinei” sem saber o que estava ensinando? Penso
que só se pode “aprender” do Latim ad, “junto” mais prehendere, com
o sentido de “levar para junto de si”, metaforicamente “levar para junto da
memória” aquilo que não se sabe, tendo como única variação possível, porém
pouco provável, o verbo reaprender, voltar a aprender aquilo que se havia
aprendido e esqueceu, mas quando se aprende alguma coisa e se esquece, uma
dúvida logo surge: será que aprendeu mesmo, afinal? Não reza a lenda que aquilo
que realmente se aprende jamais se esquece? Penso que seria complicado um mundo
onde as pessoas tivessem que reaprender a andar, falar, nadar…andar de
bicicleta frequentemente. Dramatizando isso em um procedimento médico, por
exemplo, não significaria dizer que um cirurgião vascular “aprende” sobre as
veias coronárias somente estando debruçado sobre o tórax aberto de um paciente cardíaco?
“Qual é mesmo a cava superior?”, indaga o cirurgião ao assistente de cirurgia.
Improvável não? Mas um educador pode chegar na Sala dos Professores no
intervalo das aulas e, em espanto, exclamar aos quatro cantos: “Geeeennnttteeee,
não é que a terra é redonda mesmo!!! Jurava que era plana”, isso depois, e
somente depois, de acessar uma webcam ao vivo de um satélite da NASA em órbita
terrestre com os alunos em uma aula de Ciências. Depois não sabemos o porquê
(ou seria ‘porque’, tenho que aprender…) da diferença salarial tão gritante
entre as duas classes de profissionais.
Já
sobre a segunda frase, a questão é um pouco mais complexa, filosófica até algo
do tipo “…o ovo ou a galinha?”. Posso dar aquilo que não tenho? E por que não
tenho? Não tenho porque não me foi dado? Posso ter sem ter recebido? Creio que
se o trecho da oração de Francisco de Assis se referisse apenas, e tão somente,
ao plano terreno, físico seria fácil explicar e coerente a sentença. Mas é
sobre sentimentos, amor, compreensão, perdão…a que ele se refere, é ao plano
espiritual, metafísico. Tanto é verdade que a própria inspiração de Francisco,
Jesus Cristo, veio, segundo as Escrituras, para dar o exemplo, amar os que o
odiaram, perdoar os que o condenaram. Só na teoria, na palavra não teria
sentido. Como posso amar, sem nunca ter recebido tal complexo sentimento? Posso realmente
perdoar sem conhecer a dádiva do perdão? Compreender sem ter a dimensão real do
compreensivo? Geralmente podemos aprender pelo exemplo ou pelo bizarro, quer
dizer, posso aprender a amar pelo amor ou pelo contrário dele, pelo ódio.
Aprender a compreender a partir da incompreensão. Aprender a perdoar depois de
ter sido eu mesmo condenado. A isso chamamos pomposamente de sublimação,
mas vamos e venhamos, é muito
arriscado. O ideal é quando aprendemos a amar por termos sido amados,
compreender por em algum momento termos sido profundamente compreendidos,
perdoar por termos sido perdoados. Só que assim, a sentença franciscana fica
comprometida, invertida, “é recebendo que se dá”, ou melhor, “damos aquilo que
recebemos”. Se recebi muito, posso dar muito. Se recebi pouco, pouco dou. Se
nada recebi, nada dou. Essa, ao meu ver, é a realidade, a triste realidade,
longe de ideologias religiosas, mas próximo, muito próximo do
que vivenciamos. Há
exceções, mas são exceções. Aqueles que pouco receberam, mas muito dão, e os
que nada receberam, mas conseguem dar algo…aprenderam com o bizarro, o esdrúxulo,
o contrário…aprenderam com a vida, são sobreviventes, guerreiros, são os
melhores do pior que poderiam, que estavam fadados a ser… “Vós pouco dais
quando dais de vossas posses. É quando dais de vós próprios que realmente
dais”, escreveu o poeta libanês Gibran Khalil Gibran. Dádiva,
portanto, fala quase sempre
sobre pessoas e não coisas e aprender pelo que lhe foi negado exige muita,
muita presença de espírito, dedicação e autoconhecimento.
Difícil? Certamente, mas não impossível.
Por Cristian Menezes – Junho/2020
