quarta-feira, junho 17

Ensaio: O melhor do pior que poderia ser

                                                                       A arte de Pawel Kuczynski
Andei refletindo muito sobre duas frases, uma a vejo estampada em uma porta quase em frente à minha sala de trabalho todos os dias e outra já tinha ouvido várias vezes, mas nunca tinha me chamado muito a atenção, creio que o problema semântico, que EU vejo nelas, talvez me tenha despertado interesse. A primeira, “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”, dita por Cora Coralina e repercutida enfaticamente entre pedagogos e profissionais da Educação. A outra é secular, é um trecho da oração de São Francisco, “…É dando que se recebe…”, claramente inspirada na passagem bíblica “Dai, e vos será dado…” (Lucas 6. 38). Sobre a primeira frase, vejo uma discrepância (crono)lógica na segunda parte, “…e aprende o que ensina”. Como assim? Não seria a “confissão” explícita de que “ensinei” sem saber o que estava ensinando? Penso que só se pode “aprender” do Latim ad, “junto” mais prehendere, com o sentido de “levar para junto de si”, metaforicamente “levar para junto da memória” aquilo que não se sabe, tendo como única variação possível, porém pouco provável, o verbo reaprender, voltar a aprender aquilo que se havia aprendido e esqueceu, mas quando se aprende alguma coisa e se esquece, uma dúvida logo surge: será que aprendeu mesmo, afinal? Não reza a lenda que aquilo que realmente se aprende jamais se esquece? Penso que seria complicado um mundo onde as pessoas tivessem que reaprender a andar, falar, nadar…andar de bicicleta frequentemente. Dramatizando isso em um procedimento médico, por exemplo, não significaria dizer que um cirurgião vascular “aprende” sobre as veias coronárias somente estando debruçado sobre o tórax aberto de um paciente cardíaco? “Qual é mesmo a cava superior?”, indaga o cirurgião ao assistente de cirurgia. Improvável não? Mas um educador pode chegar na Sala dos Professores no intervalo das aulas e, em espanto, exclamar aos quatro cantos: “Geeeennnttteeee, não é que a terra é redonda mesmo!!! Jurava que era plana”, isso depois, e somente depois, de acessar uma webcam ao vivo de um satélite da NASA em órbita terrestre com os alunos em uma aula de Ciências. Depois não sabemos o porquê (ou seria ‘porque’, tenho que aprender…) da diferença salarial tão gritante entre as duas classes de profissionais.
Já sobre a segunda frase, a questão é um pouco mais complexa, filosófica até algo do tipo “…o ovo ou a galinha?”. Posso dar aquilo que não tenho? E por que não tenho? Não tenho porque não me foi dado? Posso ter sem ter recebido? Creio que se o trecho da oração de Francisco de Assis se referisse apenas, e tão somente, ao plano terreno, físico seria fácil explicar e coerente a sentença. Mas é sobre sentimentos, amor, compreensão, perdão…a que ele se refere, é ao plano espiritual, metafísico. Tanto é verdade que a própria inspiração de Francisco, Jesus Cristo, veio, segundo as Escrituras, para dar o exemplo, amar os que o odiaram, perdoar os que o condenaram. Só na teoria, na palavra não teria sentido. Como posso amar, sem nunca ter recebido tal complexo sentimento? Posso realmente perdoar sem conhecer a dádiva do perdão? Compreender sem ter a dimensão real do compreensivo? Geralmente podemos aprender pelo exemplo ou pelo bizarro, quer dizer, posso aprender a amar pelo amor ou pelo contrário dele, pelo ódio. Aprender a compreender a partir da incompreensão. Aprender a perdoar depois de ter sido eu mesmo condenado. A isso chamamos pomposamente de sublimação, mas vamos e venhamos, é muito arriscado. O ideal é quando aprendemos a amar por termos sido amados, compreender por em algum momento termos sido profundamente compreendidos, perdoar por termos sido perdoados. Só que assim, a sentença franciscana fica comprometida, invertida, “é recebendo que se dá”, ou melhor, “damos aquilo que recebemos”. Se recebi muito, posso dar muito. Se recebi pouco, pouco dou. Se nada recebi, nada dou. Essa, ao meu ver, é a realidade, a triste realidade, longe de ideologias religiosas, mas próximo, muito próximo do que vivenciamos. Há exceções, mas são exceções. Aqueles que pouco receberam, mas muito dão, e os que nada receberam, mas conseguem dar algo…aprenderam com o bizarro, o esdrúxulo, o contrário…aprenderam com a vida, são sobreviventes, guerreiros, são os melhores do pior que poderiam, que estavam fadados a ser… “Vós pouco dais quando dais de vossas posses. É quando dais de vós próprios que realmente dais”, escreveu o poeta libanês Gibran Khalil Gibran. Dádiva, portanto, fala quase sempre sobre pessoas e não coisas e aprender pelo que lhe foi negado exige muita, muita presença de espírito, dedicação e autoconhecimento. Difícil? Certamente, mas não impossível.
                                                          
                                                                           Por Cristian Menezes – Junho/2020